“Maconha na adolescência é uma fábrica de losers”, afirma psiquiatra Sérgio de Paula Ramos
Diário Catarinense
Por Larissa Rosso
Sérgio de Paula Ramos define a dependência química como o grande problema de saúde pública deste século Foto: André Ávila / Agencia RBS
A dependência química é uma doença democrática, define o psiquiatra e psicanalista Sérgio de Paula Ramos, 67 anos. Atinge, na mesma medida, as classes alta, média e baixa. No país, 12% da população têm transtorno por uso de álcool; de 4% a 5%, por consumo de outras drogas; e dependentes de tabaco somam 13% dos brasileiros. É o grande problema de saúde pública deste século, segundo o médico, uma das mais destacadas autoridades no tema.
– E, com a legalização da maconha, tende a piorar o quadro – projeta Ramos, membro da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina e do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas.
O psiquiatra, com mais de 40 anos de carreira, explica que a intervenção precoce é fundamental. Apesar de árduo, o desafio da recuperação, se encarado no início do problema, apresenta chances “fantásticas” de êxito. Ramos está habituado a lidar com jovens e observa as famílias, nos dias de hoje, mais atentas e capazes de reagir quando confrontadas com indícios de que algo não vai bem.
– Os pais não estão mais entrando naquela de “meu filho me disse que a maconha que eu achei na mochila é do amigo dele, e eu acredito no meu filho”. Eles já sabem que a maconha é do filho – exemplifica. – Maconha na adolescência é uma fábrica de losers. Tirar a cabeça da areia e enxergar a realidade é uma conduta que muda o futuro. Não dá para conviver com droga sem prejuízo. Droga nenhuma, em nenhuma dose, faz bem para a saúde. A partir de certa dose, dependendo da idade, começa a fazer mal.
Nesta entrevista, Ramos também revisita casos marcantes de sua trajetória, critica a indústria e a propaganda do álcool e comenta iniciativas de combate ao crack.
Em mais de 40 anos de carreira, o senhor já vivenciou muita coisa.
Me dediquei à clínica e à prevenção. Na prevenção, trabalhei em colégios, na propositura de programas de prevenção de consumo de drogas em diferentes níveis de governo. Sinto alguma frustração em perceber que, no Brasil, quem faz a política sobre drogas é a indústria. A primeira droga que o brasileiro usa, e lamentavelmente cada vez mais cedo, é o álcool. Uma criança que toma álcool aos 12, 13 anos vai experimentar maconha aos 14 e, aos 17, está na cocaína ou em drogas sintéticas. Está muito claro que se deve começar por uma política restritiva do álcool. Calcula-se que 8% do faturamento da indústria da cerveja provém da venda para menor de idade. Então, não se espere que a indústria seja aliada na erradicação do consumo de bebidas alcoólicas por menores. Não conseguimos mobilizar a opinião pública para se opor à indústria do álcool, poderosa, que está sempre mancomunada com a turma da publicidade, com os donos das grandes empresas de comunicação. Proibimos a propaganda do tabaco e deu certo. A propaganda de bebida é toda voltada para o público jovem. Você não vê velho tomando cerveja, você vê jovem, bonito, forte em situação lúdica, praia, festa. Isso vai incutindo na população jovem e de adultos, de modo geral, que não existe a possibilidade de divertimento sem álcool. Negando que, nos levantamentos nacionais, 48% da população adulta não bebe. Colocam na nossa cabeça que todo mundo bebe.
O senhor é contra a liberação da maconha.
Visceralmente contra. Há um movimento mundial, solidamente econômico – não está se discutindo ideologia ou direitos humanos, está se discutindo lucro. É o velho capitalismo selvagem em detrimento da saúde pública. Até três, quatro anos, era “eu acho isso, você acha aquilo”. Agora não podemos mais permanecer no achismo, já temos dados. Após a legalização da maconha no Uruguai, os homicídios praticamente dobraram. O consumo de maconha nos lugares do mundo onde ela foi legalizada praticamente dobrou. E, ao contrário da tese de que enfraqueceria o tráfico, fortaleceu-o. Então você vê que se tenta promover (a liberação da maconha) – às vezes até com o auxílio da mídia – sem uma reflexão. Mas e a população? Qual vai ser o custo desse novo tabagismo?
E qual é o custo para a população?
Terrível. Talvez uma das drogas mais deletérias para jovens seja a maconha. Em jovens, o uso de maconha está associado ao desenvolvimento de esquizofrenia, depressão e queda do rendimento escolar e acadêmico. Maconha na adolescência é uma fábrica de losers. Já existem muitos trabalhos mostrando que, se você usou maconha na adolescência, aos 25 anos vai ter menos diploma universitário, menos relações amorosas estáveis e menos emprego do que quem não usou.
Quais histórias mais o impactaram ao longo desses anos todos?
Vamos pegar três cases. Tínhamos ido ao Deserto do Atacama para fotografar. Na pracinha de São Pedro do Atacama, lá estava um jovem com a aparência de quem não via água há uns quatro meses, cabelo rastafári, as roupas muito sujas, emagrecido, costurando lantejoulas em uma camiseta. Paulista, (contou que era) estudante de Arquitetura da USP, que algumas coisas foram acontecendo na sua vida, começou a ver as coisas com mais clareza e descobriu sua vocação: morar lá e costurar lantejoulas em camisetas. Ele não sabia quem eu era ou o que fazia. Perguntei como era o seu consumo de maconha, ele disse que usava desde os 15 anos, estava fumando três ou quatro baseados por dia. A quantidade havia aumentado quando ele entrou na faculdade. “E quando se deu essa sua clarividência sobre a vocação para ser artesão aqui?”, perguntei. Ele disse que uns dois anos antes, quando aumentou o consumo de maconha. Provavelmente ele era um microgênio, para ter entrado na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), e a maconha o reduziu, com todo o respeito aos artesãos verdadeiros, a um pedinte em uma vila. “Descobri que não dou para os estudos” – não, é a sua praia, sim, não é a praia da maconha. Outra história impactante ocorreu há mais de 20 anos, quando atendi um colega cirurgião. Uma situação absolutamente dramática: ele precisava usar opioide injetável para entrar num estado de tranquilidade e poder operar. Acho que foi a situação mais difícil que atendi na minha vida. O terceiro caso que eu destacaria é o de uma mulher. Quando comecei a trabalhar com álcool, eu tinha 13 homens alcoolistas para cada mulher internada por alcoolismo. Hoje, dependendo do mês, tenho um por um. Tem preços específicos que a mulher paga que o homem não paga: o uso de álcool na gravidez, o favorecimento da entrega do corpo contra a cessão de álcool e drogas para a usuária. O caso de uma mãe que deixava o seu bebê chorando de fome no quarto ao lado enquanto ela estava cheirando na sala, não tem como ficar indiferente a isso…
Houve um caso assim?
Mais de um. Não é só no cinema, isso aí é realidade.
Enxergamos menos a mulher alcoolista.
Porque um dos traços do alcoolismo feminino é a clandestinidade. A mulher de classe média e classe alta, muitas vezes, pede para a empregada ir ao supermercado. Como mostra o filme Quando um Homem Ama uma Mulher (1994), com o Andy Garcia e a Meg Ryan, ela embrulha as garrafas vazias para botar no lixo. Ela bebe escondida do cônjuge. Muitas vezes, é um alcoolismo diurno. Ela esconde garrafas no armário, no meio das roupas, e muito cedo começa a dar problema com os filhos. Às vezes uma criança que é um bom aluno, de repente, começa a ter problemas na escola. Você vai, vai, vai (investigando)… a mãe está bebendo demais.
Qual é o impacto para a vida da criança e do adolescente que crescem convivendo com a dependência química dos pais?
Temos um duplo impacto. Um veio de fábrica, determinado pela genética. Sabe-se hoje que existe um fator de vulnerabilidade – se dois jovens são expostos ao álcool, aquele que tem outros casos de alcoolismo na família estará mais vulnerável do que o outro que não tem. A criança que cresce vendo o pai beber, vendo a mãe beber, vendo que em casa não tem nenhum churrasco, nenhuma festa que não tenha bebida, ela vai aprendendo que consumir álcool é compulsório. E aí terá os dois fatores somados, o ambiental e o genético. E como reação, sobretudo à dependência química dos pais, muitas vezes surge, na adolescência, a síndrome pseudomaturacional. Muito cedo, os filhos são convocados à inversão de papéis – um adolescente de 14, 15 anos de repente tem que cuidar do pai, da mãe. Esse quadro produz jovens muito responsáveis, estudiosos e que têm muitas dificuldades nas relações afetivas – não namoram, não transam, não têm amigos. O intelecto, a cognição vão lá na frente, e os afetos ficam ancorados lá atrás. A vida os convocou para um papel adulto que eles não têm nem cérebro para exercer.
Deparar com o pai ou a mãe frequentemente intoxicados é algo brutal.
Brutal. A dependência química é a doença mais frequente no país e seu efeito é devastador, não só para o paciente, mas para a sua família.
Esse filho tem dois caminhos: desenvolver horror a substâncias químicas ou ter grande risco de embarcar nessa também…
Diria que tem três caminhos. O primeiro é repetir, determinado pela genética e pelo ambiente. Não é o mais comum, mas é bastante frequente. O segundo caminho é isso aí maquiado: “Meu pai é alcoolista, eu não bebo, sou abstêmio, tenho horror disso. Mas fumo três baseados por dia”. Ou seja, trocou seis por meia dúzia, continua na dependência química. E o terceiro caminho é o horror a tudo isso. Adolescentes filhos de dependentes químicos constituem um grupo de risco para vários acometimentos da saúde mental, um deles a própria dependência química.
O que mais destrói relações hoje em dia?
O álcool continua sendo a droga mais usada no Brasil, então destrói mais frequentemente. Mas usuários de cocaína aceleram o processo. O alcoolista às vezes demora 20 anos para desestruturar a família, e o dependente de cocaína faz isso bem mais depressa. A droga é tanto mais dependógena quanto mais rápido e quanto menos duradouro é o seu efeito. O crack começa a fazer efeito em dois minutos e cessa em 25, 30 minutos. É uma droga altamente dependógena. O tabaco, mesma coisa. Em uma, duas horas, já passou o efeito da nicotina e você tem que fumar de novo. O álcool demora um pouco mais para fazer efeito e para passar também. Leva anos de consumo excessivo para ficar dependente.
O que o senhor tem achado das medidas da administração João Doria, em São Paulo, em relação à cracolândia?
Destrambelhadas. Ele pediu uma autorização que já está dada. Desde 2001, existe a figura legal da internação compulsória. Ele não precisava ter pedido autorização, foi um jogo de mídia. Segundo, tenho um levantamento que saiu há pouco da cracolândia de São Paulo: 13% dos frequentadores não usam droga. Dos usuários de droga, não chegam a 70% os que estão no crack. E quase 80% gostariam de se tratar voluntariamente, se tratamento digno fosse oferecido. Achar que todas as pessoas que frequentam a cracolândia precisam de internação compulsória é próprio de quem não conhece a realidade. Você precisa oferecer tratamento segmentado por subgrupo. Quase 20% dos habitantes da cracolândia estão com sífilis, então você tem que dar tratamento específico. Tem tratamento para o grupo que quer se tratar, para o grupo que está com doença sexualmente transmissível, para o grupo que tem família, para o que não tem família e para o que não quer se tratar e não tem família – bom, esses aqui, sim, internação compulsória, altamente defensável do ponto de vista técnico e humano. Mas não mandar todo mundo. Por que o Doria não fez nada? Aí temos que entrar em outro problema muito sério. O movimento antimanicomial foi um câncer com raízes muito sólidas no Rio Grande do Sul. Foram fechados 130 mil leitos psiquiátricos no Brasil nos últimos 20 anos. Não temos nem onde internar dependentes químicos voluntários, que dirá os compulsórios. O que fazer com o dependente químico? Enfiar onde?
É possível recuperar esses pacientes?
Os pacientes compulsórios têm taxa de recuperação menor que a dos voluntários, mas muito maior do que o não tratamento. Não é possível, no século 21, a gente não ter uma alternativa terapêutica para alguém cujo lobo frontal foi comprometido e não consegue, por lesão neuroanatômica, tomar uma decisão sensata sobre a vida. O médico tem que tomar a decisão para salvar a vida dessa pessoa. Senão ela vai pegar aids, sífilis e vai morrer. Onde vamos colocar esses pacientes? É um sério problema, subproduto do movimento antimanicomial. O paciente vai se recuperar se tiver um bom tratamento em que consiga ficar abstêmio e puder dispor de programas sociofamiliares de resgate do vínculo. Costumo dizer que a medicina da dependência química está atrasada. 110% dos pacientes que me procuram gostariam de continuar usando, só que moderadamente. Infelizmente, a medicina ainda não descobriu a pílula da moderação, nem para peso, que dirá para dependência química. Tem que cessar completamente. Existem tratamentos, e grupos de autoajuda como Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos. Tem, sim, chance de recuperação.
Um dependente químico muito alterado pelo uso da substância pode provocar mais repulsa do que compaixão. Muita gente não compreende bem a situação dessas pessoas.
Vamos pegar (o exemplo de) uma casa noturna para materializar o que você está falando. Se você chegar movido a álcool, alegrinho, é bem-vindo, está no clima. Se lá dentro continuar bebendo a ponto de se meter numa confusão, os seguranças te jogam na rua. A sociedade trata o dependente químico mais ou menos desse jeito. No passado, fabricava-se um copo de uísque que vinha com três figuras de bichos. A primeira dose, do lado tinha um macaquinho – alegre, simpático, brincalhão. A segunda, um leão – quer briga. E a terceira, um porco – ou seja, bebe como um porco, vomita, faz o diabo. A sociedade trata receptivamente os dependentes químicos no início da carreira. Depois, vem o rechaço.
Como o senhor orientou seus filhos?
Muito simples: sexo protegido é saúde, droga é doença. Ia levar a festas, buscar em festas. “Pai, mas todo mundo…”, me diziam. “Você não é da família todo mundo.” Tolerância zero. Não pode beber. Se for para beber, fica em casa. Esse é mais um assunto complexo e instigante, o beber em casa. Hoje está bem documentado que é fator de risco. Na colônia italiana, é parte da cultura, molham o bico (das crianças) no vinho. Me perguntam quando comecei a beber, e minha resposta é safada e verdadeira: com três anos de idade. Minha nona entendia que nada era mais eficaz para a prevenção de gripe no inverno do que gemada com vinho do Porto. Sim, temos que reconhecer que faz parte da cultura, mas não podemos dar as costas para os dados, que mostram que a exposição precoce ao álcool é fator de vulnerabilidade. Pais que sabem onde seus filhos estão, com quem e fazendo o que têm menos droga do que os pais que não sabem. E os pais que entram na história do “todo mundo” estão ferrados.
O senhor bebe?
Bebo, todos os dias, dois dedos de vinho. Pego um cálice, me sirvo, fecho a garrafa, ponho na porta da geladeira e sento para jantar. Vivi minha adolescência nos anos 1960 em São Paulo. Sim, experimentei maconha duas vezes na minha vida. (Achei) um matinho fedido. Em momento algum faço a proposta de que o álcool tenha que se tornar uma droga ilícita. Em momento algum faço campanha contra, até porque reconheço que, de cada cinco bebedores, três ou quatro não têm problemas para beber, e pretendo estar dentro dessa estatística. Mas há de se cuidar. Redundância: alcoolismo só dá em pessoa que bebe. Alcoolismo não é uma doença que dá em abstêmios.