RELATÓRIO DA INSPEÇÃO NACIONAL EM COMUNIDADES TERAPÊUTICAS – 2017
PREFÁCIO
Em nome da proteção e do cuidado, que formas de exclusão, de sofrimento e de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes têm sido produzidas? No campo do direito à saúde mental, problematizar as lógicas e racionalidades da dimensão jurídico-política que envolve essa questão apresenta-se como um desafio permanente às instituições voltadas à promoção e proteção dos direitos humanos.
Por muitas décadas, o Brasil conferiu aos loucos e aos indesejáveis regime de segregação social e de degeneração nos manicômios e hospitais psiquiátricos. Dezenas de milhares de mulheres, homens e crianças foram vítimas dessa prática – já nomeada como o “holocausto brasileiro”.
A experiência nos convoca à imperiosa reflexão sobre o cuidado à saúde e sobre as construções sociais relativas a determinados sujeitos. Embora hoje um amplo arcabouço legal e normativo impeça, taxativamente, a existência de instituições com características asilares promotoras de exclusão e de maus-tratos, é um desafio consolidar a compreensão de que violações de direitos não podem ocorrer, ainda que sob a justificativa do cuidado.
A potência da efetiva prática em direitos humanos está na problematização da violência e da exclusão produzidas na sociedade. Os modelos de aprisionamento necessitam ser postos em análise. Nesse sentido, é preciso desconstruir a imagem de que há um sujeito a ser corrigido.
A iniciativa, que resulta no presente relatório, orientou-se pela necessidade de qualificar o debate acerca do modelo de cuidado ofertado a pessoas com transtornos mentais decorrentes do uso de álcool e outras drogas – um desafio que envolve gestores públicos, profissionais de saúde e instituições voltadas à promoção e proteção de direitos.
Buscando lançar luz sobre territórios ainda pouco conhecidos pelo conjunto da sociedade, a inspeção nacional identificou nas comunidades terapêuticas vistoriadas a adoção de métodos que retomam a lógica da internação, inclusive compulsória, como recurso primeiro e exclusivo de suposto tratamento, em absoluta contrariedade à legislação vigente.
A privação de liberdade é a regra que sustenta esse modelo de atenção, visto ocorrer não apenas nos estabelecimentos que autodeclaram realizar internação involuntária e compulsória, mas também naqueles que anunciam atender somente internações voluntárias, embora não oportunizem aos internos condições reais de interromper o “tratamento”. Trata-se, portanto, da imposição real de barreiras, que vão desde retenção de documentos, intervenção para dissuadir a vontade apresentada, até a não viabilização de transporte para a saída de instituições isoladas dos perímetros urbanos. Além desses obstáculos, não há política ativa de informação e transparência que permita à pessoa internada uma tomada de decisão autônoma e soberana acerca de quando cessar o “tratamento”.
Em suas mais de 150 páginas, o presente relatório sistematiza o conjunto de informações coletadas em cada um dos 28 estabelecimentos visitados – em todos, há de se frisar, foram identificadas práticas que configuram violações de direitos humanos.
Considerando a oferta de financiamento público a esse modelo de instituição – inclusive em desfavor das políticas de saúde mental de base comunitária, preconizadas pela legislação brasileira – o relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas evidencia questões, convoca à reflexão e exige uma tomada de posição por parte do Estado e da sociedade brasileira.
O horizonte está na compreensão de que manicômio não se resume aos muros dos antigos e tradicionais hospitais psiquiátricos, mas, muito além disso, constitui uma lógica que se concretiza nas relações humanas, tendo como imperativos a segregação e a anulação de sujeitos.
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Deborah Duprat
PFDC/MPF
Lucio Costa
MNPCT
Rogério Giannini
CFP