23 de novembro de 2024

Adolescentes aprisionados

15 de junho de 20179min19
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Estado precisa ter cuidado especial ao punir jovens, porque chances de reabilitação são muito maiores

EL PAÍS – César Muñoz Acebes*

(Celas no Ceará, onde jovens só podem sair se receberem visitas)

Quando um adolescente comete o erro de infringir a lei, o Estado precisa ter um cuidado especial na hora de puni-lo, por pura e simples humanidade, mas também porque as chances de reabilitação são muito maiores quando o infrator é tão jovem. As leis brasileiras, de fato, preveem de forma cuidadosa as medidas aplicáveis a jovens que cometem atos infracionais. No entanto, essas leis são frequentemente ignoradas, e os resultados disso podem ser fatais.

Dois adolescentes foram assassinados no dia 5 de junho em Pernambuco num centro socioeducativo com capacidade para 98 jovens, mas que abrigava 174. Segundo o Conselho Nacional de Direitos Humanos, 44 adolescentes internados foram assassinados em Pernambuco desde 2012.

No estado da Paraíba, no dia 3 de junho, cinco adolescentes em uma unidade que abrigava cinco vezes mais jovens do que sua capacidade morreram em um quarto após este ter sido incendiado por outros jovens. Outros dois adolescentes foram espancados até a morte no pátio.

Foram nove adolescentes mortos em um espaço de dois dias.

Em outubro, entrevistei adolescentes no estado do Ceará que só podiam sair de seus “dormitórios” – celas, na verdade –se recebessem visitas. Eles até mesmo comiam dentro dos quartos, e não tinham absolutamente nenhuma das atividades educacionais ou recreacionais previstas em lei. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Cedeca Ceará – uma ONG local –, e a Human Rights Watch documentaram dezenas de casos de maus-tratos e torturas de adolescentes cometidos pela polícia ou por funcionários dos centros socioeducativos nos últimos dois anos. Até onde foi possível investigar, ninguém foi processado criminalmente por esses abusos.

De acordo com relatórios enviados pela Defensoria Pública de São Paulo em 2015 e 2016 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em um centro socioeducativo desse estado, funcionários rotineiramente agrediam adolescentes e os mantinham isolados,. A Comissão concluiu que nenhum servidor foi punido pelos abusos, e menos ainda processado criminalmente.

Em uma nota , publicada após as mortes do dia 3 de junho na Paraíba, 35 juízes de varas da Infância e da Juventude do estado afirmaram que a tragédia foi resultado “do total descaso” do estado para com os adolescentes. O governo estadual respondeu à nota responsabilizando os juízes, que, segundo afirmou o governo, têm “dezenas” de pedidos de liberação ainda não analisados, incluindo casos de adolescentes que ultrapassaram o tempo legal de internação, que é de três anos.

Tanto o governo do estado como os juízes estão se comportando irresponsavelmente.

O estado fracassou em sua obrigação de proteger os adolescentes sob sua custódia, e os juízes mantêm a internação de adolescentes que não deveriam estar privados de liberdade. A própria nota dos juízes afirma que alguns deles estão internados por infrações não violentas, como furto ou tráfico de drogas.

As leis brasileiras e internacionais afirmam que a privação de liberdade de adolescentes deve ser uma medida excepcional. Conforme as leis brasileiras, adolescentes podem ser internados apenas caso cometam atos infracionais “mediante grave ameaça ou violência a pessoa”, caso cometam outras infrações graves ou descumpram reiteradamente medidas socioeducativas anteriores. O Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que um ato infracional análogo ao tráfico de drogas não justifica, por si só, a internação de adolescentes.

As autoridades têm o direito de investigar e promover a responsabilização pelas violações da lei, inclusive aquelas perpetradas por adolescentes. Mas a lei brasileira prevê uma série de outras medidas além da internação, desde advertências até a inserção em regime de semi-liberdade – no qual adolescentes participam de atividades fora da unidade durante o dia. Estudos nos Estados Unidos indicam que programas que promovem a inserção na comunidade são mais efetivos na redução da reincidência – e, portanto, na redução do crime – do que instalações fechadas como aquelas chamadas eufemisticamente no Brasil de unidades “socioeducativas”.

O Congresso deveria agir em defesa dos adolescentes com propostas para resolver esses problemas, mas, em vez disso, está trabalhando em leis que apenas os agravariam, como a proposta que prevê o aumento do tempo máximo de internação de adolescentes para até 10 anos.

Seriam 10 anos trancafiados em unidades onde adolescentes poderiam não ter acesso à educação, serem recrutados por facções criminosas e correrem sérios riscos de maus-tratos e morte. E, no entanto, esses adolescentes supostamente deveriam sair ressocializados desses centros.

A reforma que o sistema socioeducativo precisa consiste em simplesmente fazer com que as autoridades cumpram a lei – e processem criminalmente os responsáveis por abusos – para que os adolescentes tenham uma chance real de mudar de vida.

César Muñoz Acebes é o pesquisador sênior para o Brasil da Human Rights Watch


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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