28 de março de 2024

A medicina e a legalização da maconha

26 de junho de 201713min0
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Medscape

Dr. Marco Antônio Bessa e Dr. Sivan Mauer

 

20 de junho de 2017

A história não se movimenta de modo retilíneo, uniforme. O acaso, o inusitado e o imprevisível surgem, e apresentam fatos e desfechos que poderiam parecer impossíveis. A medicina em sua história está repleta de condições assim. A descoberta da penicilina e do Helicobacter pylori são alguns exemplos. Alguns procedimentos que pareciam científicos e racionais na distância do tempo acabam perdendo o sentido.

Por exemplo, nas primeiras décadas do século XX os médicos faziam a apologia do tabaco. Receitavam-no para a ansiedade, para tosse e dor de garganta. Hoje existe um forte debate a respeito da legalização da maconha e os médicos são intimados a opinar sobre esse tema. As posições na sociedade são polarizadas entre os que apoiam a legalização de forma organizada e os que são contra ela. Os argumentos de ambas partes são respeitáveis e merecem atenção. A perspectiva médica deve ser construída à luz dos conhecimentos científicos atuais e das evidências clínicas. As questões econômicas, sociais e culturais envolvidas também devem ser respeitadas, e todas as informações devem ser contextualizadas em sua dimensão histórica.

O uso medicinal de plantas acompanha a evolução biológica e cultural da humanidade. A Digitalis, a Belladona, o Stramonium e o salgueiro são ainda hoje fonte de medicamentos importantes e úteis, com seus respectivos derivados: a digoxina, a atropina e hioscina e o ácido acetilsalicílico. Produtos de origem animal também podem ser medicinais. O captopril é uma substância originada do veneno da cobra jararaca que foi sintetizada pelo cientista brasileiro Sergio Silva[1].

O ponto principal é que todas essas substâncias foram estudadas seguindo todos os passos dos protocolos científicos para a aprovação de medicamentos. O que ocorre hoje com a Cannabis é que se quer legalizar o uso da planta fumada sem pesquisas científicas que identifiquem os princípios ativos e suas respectivas indicações clínicas, efetividade e segurança.

A maconha é conhecida desde tempos imemoriais, e no século XIX já era indicada para o tratamento do tétano e de quadros convulsivos, portanto, não há novidade no conhecimento de algumas de suas propriedades medicinais. Nos EUA já existem pelo menos três medicamentos derivados dessa planta, além do estudo de outras substâncias dela derivadas, e de pesquisas com canabidiois sintéticos[2], mas o ponto que aqui interessa é ressaltar que, apesar de ter qualidades medicinais, o uso da maconha não é curativo ou isento de riscos e malefícios, como a publicidade associada à campanha de legalização procura convencer a população, e em particular os jovens.

Do ponto de vista médico, os estudos demonstram existir substanciais evidências de importantes malefícios em relação a maconha, como o desenvolvimento de esquizofrenia ou outras psicoses – com maior risco entre os consumidores mais frequentes –, baixo peso de recém-nascidos, aumento na incidência de acidentes automobilísticos. O transtorno por uso de maconha está associado à idade precoce de início do uso, ser do sexo masculino e fumar tabaco[3,4].

Existem, também, moderadas evidências da associação entre o uso de Cannabis sativa e sintomas de mania e hipomania em indivíduos diagnosticados com Transtorno Afetivo Bipolar, incidência aumentada de ideação suicida, e alta incidência de tentativas de suicídio entre consumidores pesados, além do aumento da incidência de suicídios consumados[5,6].

Além disto, existem evidências associadas à frequência do uso de Cannabiscom o aumento da incidência de transtorno de ansiedade social, comportamento opositor, idade precoce do primeiro uso de álcool, uso de nicotina e rendimento escolar pobre durante a adolescência[7,8].

Além das questões psiquiátricas, a Cannabis – principalmente a fumada – tem sido cada vez mais relacionada a problemas respiratórios, câncer e doenças cardiovasculares agudas e crônicas[9,10].

No Brasil já existe lei que proíbe a comercialização e a venda de bebidas alcoólicas e de tabaco para menores de 18 anos. No entanto, é uma lei não fiscalizada e não cumprida. Esse é um dos fatores mais preocupantes na legalização da maconha. Não há nenhum motivo para se acreditar que a comercialização da maconha, eventualmente legalizada para ser vendida apenas a maiores de 18 anos, será fiscalizada, e que haverá punição para os comerciantes infratores. Também parecem se confirmar as suspeitas de que a legalização resultará em aumento de consumo, como demonstra recente estudo americano que compara o consumo nos estados onde foi legalizado o consumo de maconha com os estados nos quais permanece a proibição nos EUA[11,12]. É muito provável que o mesmo ocorra no Brasil, especialmente entre os jovens. Diante dessas informações questiona-se: a quem a legalização da maconha trará benefícios?

Os defensores da legalização utilizarão o argumento jurídico do elevado número de prisões por tráfico de drogas que atinge principalmente a população pobre, e que a violência associada ao tráfico diminuiria. Esse tema é complexo e exigiria um artigo específico para discuti-lo.

Nas primeiras décadas do século XX ainda não eram conhecidos todos os malefícios provocados pelo tabaco. Tendo como um de seus principais idealizadores Edward Bernays, sobrinho de Freud, houve uma ampla campanha para tornar o tabaco uma substância atrativa, usando argumentos de que continha propriedades medicinais e, principalmente, associar o ato de fumar a um hábito repleto de charme, elegância e sofisticação. Para tal imagem muito contribuíram o cinema e a cultura popular, fortes veículos para o incentivo à naturalização e à disseminação do consumo do tabaco. Os médicos no início, também colaboraram para a criação de um retrato  positivo do cigarro, por desconhecer as graves e inúmeras doenças associadas a esse produto[13].

Por um período, na carência de evidências científicas, muitos médicos participaram da tragédia associada ao tabaco. No entanto, hoje já dispomos de muitos dados seguros e confiáveis a respeito dos danos à saúde associados ao uso da maconha. Será que, dessa vez, os médicos optarão por participar da farsa da legalização?

 

Dr. Sivan Mauer 
Psiquiatra, com mestrado em Pesquisa Clínica pela Boston University School of Medicine. 
Clinical Faculty Tufts University School of Medicine, Boston, USA.
Doutorando em psiquiatria Ipq da FMUSP
Consultório particular em São Paulo e Curitiba

Declaração de conflitos de interesses: O Dr. Sivan Mauer declarou não possuir nenhum conflito de interesses relevante.

Dr. Marco Antonio Bessa 
Psiquiatra, Psiquiatra da Infância e da Adolescência
Professor Adjunto de Psiquiatria – UFPR
Doutor em Ciencias – UNIFESP
Mestre em Filosofia – Universidade Federal de São Carlos
Conselheiro do CRM-PR

REFERENCIAS

  1. Goodman LS, Gilman A, Gilman AG. The Pharmacological Basis of Therapeutics. 8th ed. . New York: New York : Pergamon Press; 1990.

  2. National Academies of Sciences  and Medicine (U.S.). Committee on the Health Effects of Marijuana: an Evidence Review and Research Agenda, author. E. The health effects of cannabis and cannabinoids : the current state of evidence and recommendations for research  . provider P, ed. 2017.

  3. Volkow ND, Swanson JM, Evins AE, et al. Effects of Cannabis Use on Human Behavior, Including Cognition, Motivation, and Psychosis: A Review. JAMA Psychiatry. 2016;73(3):292. doi:10.1001/jamapsychiatry.2015.3278.

  4. Donoghue K, Doody GA, Murray RM, et al. Cannabis use, gender and age of onset of schizophrenia: Data from the AESOP study. Psychiatry Res. 2014;215(3):528-532. doi:10.1016/j.psychres.2013.12.038.

  5. Shalit N, Shoval G, Shlosberg D, Feingold D, Lev-Ran S. The association between cannabis use and suicidality among men and women: A population-based longitudinal study. J Affect Disord. 2016;205:216-224. doi:10.1016/j.jad.2016.07.010.

  6. Borges G, Bagge CL, Orozco R. A literature review and meta-analyses of cannabis use and suicidality. J Affect Disord. 2016;195:63-74. doi:10.1016/j.jad.2016.02.007.

  7. Hall W, Degenhardt L. Adverse health effects of non-medical cannabis use. Lancet. 2009;374(9698):1383-1391. doi:10.1016/S0140-6736(09)61037-0.


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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