28 de março de 2024

Até que ponto o ciúme está na fronteira da normalidade de um relacionamento ou se tornou algo patológico?

1 de abril de 201815min0
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*Por Adriana Moraes

“Algumas pessoas se tornam ciumentas em função da própria insegurança, por sentirem-se menos importantes que outras e, por isso, menos merecedoras de atenção, o que pode provocar a sensação de que serão descartadas facilmente.” Dr. Ricardo Amaral

O ciúme é uma emoção experimentada por um indivíduo que percebe que o amor, a afeição e a atenção estão sendo dados a uma terceira parte, quando julga que estas oportunidades deveriam estar sendo oferecidas a ele. [1]

Mas, até que ponto o ciúme está na fronteira da normalidade de um relacionamento ou se tornou algo patológico? Nos casos mais graves de alcoolismo é comum ocorrer o delírio de ciúme? Qual seria o tratamento para quem é dependente de álcool e que sofre de ciúme patológico? Para responder essas e outras questões tive o prazer de conversar com o psiquiatra **Dr. Ricardo A. Amaral – Médico assistente do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP.

Ciúme Patológico 

Trata-se de um transtorno afetivo grave que corrói e destrói o relacionamento e os sentimentos. O ciúme patológico é uma perturbação em que o indivíduo se sente constantemente ameaçado. Quando associado ao uso de álcool e drogas pode ocorrer casos de violência verbal e física contra o parceiro (a) ou a terceiros, agressões mais graves, podendo até levar a morte.

É impressionante como as pessoas têm a capacidade de sentir ciúme, ou melhor, de transformar o amor em medo e o medo em ciúme, com todos os seus componentes de raiva, ódio ou vingança. Quando uma pessoa aceita o sentimento de ódio, inerente ao ciúme, podemos dizer que está doente. Afinal, está vivendo para alimentar fantasias de vingança, aceitando trocar chumbo, desprezando pessoas, atropelando o sentimento dos outros, desconfiando de quem nunca deu motivos e, principalmente, cultivando estes sentimentos e comportamentos mesmo quando não está com ninguém. [2] 

O ciúme excessivo caracteriza-se por uma mistura de sentimentos de raiva, ódio, humilhação, medo, tristeza, depressão, ansiedade, insegurança, rejeição, angustia, traição e dor, está associado com baixa-estima, sentimentos de insatisfação e dúvidas crônicas. O indivíduo ciumento vive as exigências de um amor possessivo, por medo ou risco de perda do objeto amado. Os pensamentos obsessivos sobre ciúme levam a uma busca por evidências que confirmem ou não a infidelidade. Quando o parceiro confessa a traição (por não aguentar mais tantos questionamentos ou por realmente ter traído), essa confissão não traz alívio e sim mais interrogatórios aos indivíduos ciumentos. [3]

Alcoolismo e ciúme patológico

Dr. Ricardo iniciou nossa conversa falando sobre a relação do alcoolismo e o ciúme patológico. O médico nos informou que alguns estudos sugerem que o álcool pode exacerbar o ciúme patológico preexistente, e outros que a dependência do álcool leva ao ciúme patológico. Existem descrições de exacerbação de ideias de ciúme durante a intoxicação por substâncias, não apenas no caso do álcool, mas no uso anfetaminas e cocaína. No caso dessas duas últimas substâncias, o pensamento de infidelidade pode durar mesmo após o término do efeito da substância. O fato de o uso exacerbar esses pensamentos pode se dever ao fato de que muitas substâncias desinibem o usuário, mas também é possível que pessoas que se sintam desconfortáveis com o ciúme procurem substâncias para aliviar o sofrimento.

Entrevista:

drRicardo

1ª)  O ciumento expressa o desejo de controlar e possuir unicamente para si a pessoa que se quer bem. Até que ponto o ciúme está na fronteira da normalidade de um relacionamento ou se tornou algo patológico?

Segundo o dicionário Michaelis, ciúme é um “Sentimento negativo provocado por receio ou suspeita de que a pessoa amada dedique seu interesse e/ou afeto a outrem.” Pode ser também “Receio de perder algo.”, ou ainda, um “Sentimento negativo em que se mesclam ódio e desgosto, provocado pela felicidade ou situação favorável de outrem; inveja.” Na sua origem, o ciúme está ligado às ideias de fervor, calor, ardor ou desejo intenso. Curiosamente, o ciúme envolve a sensação de se sentir controlado, e não a de estar no controle. Talvez, como resposta, a pessoa que experimenta o ciúme queira controlar a pessoa, coisa ou situação que a afeta. Em um relacionamento, como em outras situações, a fronteira do normal e do patológico é difícil de definir. Alguns indicadores podem envolver a avaliação de quanto a pessoa ciumenta se sente fora do seu próprio padrão, quanto e como ela sofre com o sentimento e se existem prejuízos pessoais ou de outros devido a esse mesmo sentimento.

2ª) O ciúme pode corroer a mente de uma pessoa a ponto dela se tornar um escravo do próprio sentimento negativo. Como é que na dinâmica do processo amoroso, o ciúme se torna algo doentio?

Segundo alguns estudiosos, o ciúme tem uma vantagem em termos evolucionários: a necessidade de posse do parceiro e a propagação dos próprios genes. Existe uma linha de estudos culturais que sugere que o ciúme é menos relevante em culturas em que não há lugar para a “posse” de pessoas. Curioso, não? Algumas pessoas se tornam ciumentas em função da própria insegurança, por sentirem-se menos importantes que outras e, por isso, menos merecedoras de atenção, o que pode provocar a sensação de que serão descartadas facilmente. Diante desse temor, podem surgir ideias que não se baseiam na realidade, mas sim nas convicções pessoais. Nessa situação, qualquer indício de desatenção do outro, mesmo que irrelevante, pode se justificar pela certeza da traição. Dependendo do grau de certeza que a pessoa tenha sobre esses sentimentos, pode ser difícil evitar pensar neles e, mesmo quando confrontadas sobre o assunto e sobre a irrealidade do que pensam e dizem, essas pessoas continuam desconfiando e suspeitando. A partir desse ponto, é quase natural que a pessoa ciumenta faça acusações de infidelidade, podendo chegar a atos violentos.

3ª) Na tese de mestrado “Contribuições para o estudo do ciúme excessivo” o ciúme patológico subdivide-se em neurótico ou obsessivo, qual a diferença entre os dois tipos?

O termo neurótico é usualmente empregado no sentido de processo naturais que ocorrem no nosso funcionamento mental, assim, no nosso processo de desenvolvimento, ideias como a do ciúme surgem e são motivo de conflitos internos, sofrimento e dificuldades pessoais. A nossa tendência é passar por essas ideias e sensações no caminho para elaborar estratégias de suporte e enfrentamento. Nem sempre essas estratégias funcionam perfeitamente, mas nós seguimos tentando superar os problemas. Em determinados momentos uma pessoa pode experimentar que gasta muito tempo pensando no assunto, que tem dificuldade para pensar em outras coisas ou de evitar o pensamento ciumento, o que acaba por prejudicar o relacionamento, levando a pessoa ciumenta a verificar recorrentemente o comportamento e a limitar a liberdade da outra pessoa. Nessas condições, podemos dizer que o ciúme se tornou obsessivo. É importante ressaltar que muitas vezes a pessoa ciumenta percebe que está errada, mas não consegue evitar sua desconfiança.

4ª) Em quais doenças psiquiátricas o ciúme patológico pode se manifestar?

O ciúme patológico sem associação com outro transtorno psiquiátrico é raro e pode ser encontrado associado a transtornos afetivos como a depressão, a transtornos de personalidade, aos problemas relacionados ao uso de substâncias e à esquizofrenia. Em Transtornos mentais orgânicos também podemos observar o ciúme patológico.

5ª) Nos casos mais graves de alcoolismo é comum ocorrer o delírio de ciúme? O que seria o delírio do ciúme?

O delírio de ciúme pode ocorrer em casos graves de dependência do álcool. Basicamente, esses delírios têm como ideia básica a infidelidade e se caracterizam por serem bastante elaborados e expressos coerentemente, e são plausíveis, ou sejam, se baseiam em situações possíveis.

6ª) O alcoolismo não tem cura e o ciúme patológico? Qual seria o tratamento para quem é dependente de álcool e sofre de ciúme patológico?

Quando falamos de cura estamos pensando no retorno a uma situação prévia em que o problema não existia. No entanto, fatores facilitadores, ou de risco, para o problema já estavam presentes. Qualquer tratamento para ser mais efetivo deve prestar atenção a esses fatores de risco. Os processos de psicoterapia dinâmica, de casal e cognitivo-comportamental têm sido indicados para o ciúme patológico. A condição de base deve ser tratada com medicações muitas vezes e, em casos de risco de violência, é necessária a internação. Medidas sócio protetivas como a separação geográfica dos casais e de crianças, assim como sua proteção, precisam ser consideradas.

Agradecimento

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(Adriana Moraes e Dr. Ricardo Amaral)

Um agradecimento especial ao Dr. Ricardo, psiquiatra dedicado ao trabalho que, gentilmente, atendeu meu convite e nos informou sobre o tema solicitado.

*Adriana Moraes – Psicóloga da SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina) – Especialista em Dependência Química – Colaboradora do site da UNIAD (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas).

** Dr. Ricardo A. Amaral – Psiquiatra – Professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Anhembi Morumbi. Coordenador do Programa de Prevenção em Álcool, Tabaco e outras drogas dos Servidores da Saúde (Você-HC) do HCFMUSP. Médico assistente doGrupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP.

Referências:

[1] O ciúme patológico / Antônio Mourão Cavalcante – 3ª Ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa do Tempos, 1997.
[2] Ciúme: entre o amor e a loucura. Wimer Bottura Júnior. São Paulo: República Literária, 2003.
[3] Contribuições para o estudo do ciúme excessivo / Andrea Lorena da Costa. São Paulo, 2010. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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