Um balanço da reforma psiquiátrica brasileira
Ciência & Saúde Coletiva
Print version ISSN 1413-8123
Ciênc. saúde coletiva vol.16 no.12 Rio de Janeiro Dec. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011001300005
A review of Brazilian psychiatric reform
Jair de Jesus Mari
Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo. jamari17@gmail.com
Introdução
A Lei 10216 de 6 de Abril de 2001 foi marco fundamental da reforma psiquiátrica implantada desde a década de 90 no país, motivo do número temático sugerido pelos editores da Revista Saúde e Ciência Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. A lei 10216 trouxe avanços na proteção aos direitos humanos dos portadores de transtornos mentais e deu subsídios para uma reorientação da assistência, mudando seu foco do hospital para a comunidade. Essa lei simboliza uma reversão da situação de exclusão social da pessoa em situação asilar para aquela de cidadania e empoderamento. O artigo que nos foi solicitado debater, redigido pela Dra. Ana Pitta Hoisel, de forma articulada e apaixonada, como é de seu feitio, descreve o histórico dos movimentos sociais e dos princípios ideológicos que pautaram as mudanças da assistência no país. Mais do que debater ponto a ponto, optamos por dar um resumo de como estas questões tem repercutido na literatura especializada.
As mudanças de políticas de saúde mental, dentro de uma perspectiva global, podem ser divididas em três fases: o estabelecimento dos asilos psiquiátricos a partir de 1880 até 1955; o declínio do sistema de institucionalização e isolamento, pós-segunda guerra mundial, e a reforma dos serviços de saúde mental de acordo com uma abordagem baseada em evidências, e no equilíbrio integrado de serviços comunitários e hospitalares¹. Esta integração é reconhecida como um “modelo de assistência equilibrado”, no qual a maioria dos serviços funciona na comunidade, em centros próximos à população atendida, e onde a internação hospitalar é reduzida e, geralmente, destinada às enfermarias para doentes críticos, nos hospitais gerais. Este modelo tem sido adotado em vários países europeus¹.
Show me the data
Em 2007 tivemos a oportunidade de fazer um levantamento encomendado pela Organização Mundial da Saúde², a ser realizado como documento de governo, liderado pela Universidade Federal de São Paulo em colaboração com a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Neste levantamento foram mapeadas as unidades psiquiátricas existentes no país, o número de profissionais atuando em saúde mental, e o número de atendimentos realizados pelos SUS. Deste levantamento foram propostas várias diretrizes que deveriam ser incorporadas pelos formuladores de políticas de saúde mental:
a) Continuidade do investimento para a expansão do sistema comunitário, principalmente para o incremento da cobertura e a ampliação do acesso ao tratamento dos transtornos mentais graves (aumentar o número e a eficiência dos CAPS em operação);
b) Ampliação expressiva dos leitos psiquiátricos no hospital geral, que ajudam na minimização do estigma e têm o benefício do acesso a exames laboratoriais e de imagem, importantes no cuidado aos transtornos mentais graves;
c) Ampliação a atendimento de emergências e disponibilidade de leitos psiquiátricos no Pronto Socorro;
d) Ampliação do programa Volta para Casa e de outras ações de desinstitucionalização de pacientes de longa permanência;
e) Ampliar de modo decisivo a oferta de ações de saúde mental na atenção primária, especialmente nas equipes de Saúde da Família e de Agentes Comunitários de Saúde;
f) Formar gestores de serviços na área específica de saúde mental, preparando profissionais que possam desenvolver uma integração efetiva da assistência psiquiátrica com a rede primária;
g) Testar modelos abrangentes na cobertura e acesso universal aos serviços, principalmente no cuidados aos transtornos mentais graves;
h) No campo da pesquisa, as políticas devem ser constantemente avaliadas e aperfeiçoadas, com papel ativo da pós-graduação e das agências financiadoras;
i) O Conselho Nacional de Pesquisa e o Ministério da Saúde têm realizado chamadas específicas para estimular a pesquisa na área de avaliação de serviços de saúde mental;
j) Ampliar o financiamento SUS, que, pela sobrecarga que os transtornos mentais impõem na comunidade, deveria estar acima dos 2% da percentagem do orçamento gasto hoje em saúde. O gasto per capita deveria ser duplicado, de Us$ 1.95 para Us$ 4.0;
k) A saúde mental deve ser integrada em todas as esferas da saúde, nos níveis primário e secundário, e nas políticas sociais.
Infelizmente este documento teve pouca divulgação no país, O Ministério da Saúde ficou de traduzi-lo, e divulga-lo, o que não se concretizou, mas sua versão inglesa pode ser encontrada no site da WHO (www.who.int/mental_health/evidence/who_aims_report_brazil.pdf) .
A Visão da Associação Mundial de Psiquiatria
Entre as dez condições de maior expressão na Carga Global de Doença no planeta (estimada mediante anos de vida perdidos por incapacidade), cinco são devidas a transtornos mentais: Depressão, Dependência ao Álcool, Esquizofrenia, Transtorno Afetivo Bipolar e Transtorno Obsessivo Compulsivo³. No Brasil, o aumento da longevidade e a melhora dos indicadores de saúde das últimas décadas posicionaram os transtornos mentais entre os problemas mais importantes de saúde pública, aproximando-os do câncer, das doenças cardiovasculares e das doenças infecto contagiosas4. O impacto estimado dos transtornos mentais na carga de doenças é de 18%, podendo-se acrescentar mais 10% devido a causas externas, principalmente homicídios e acidentes de trânsito4,5. A elevada prevalência de transtornos mentais, combinada com uma carência de recursos humanos, implica na exclusão de tratamento de várias pessoas com transtornos mentais graves e incapacitantes. Em 2007, ao se dar conta de como saúde mental era negligenciada, o editor do Lancet organizou um suplemento sobre saúde mental, para ser utilizado pelos governos e formuladores de políticas de saúde mental, mostrando que os serviços assistenciais, principalmente nos países em desenvolvimento, eram insuficientes para atender uma crescente demanda6. Neste mesmo ano foi lançado um movimento, “The Global Mental Health Movement” (www.globalmentalhealth.org), que advoga pela necessidade dos governos aumentarem substancialmente o financiamento da saúde mental visando a ampliação maciça de serviços comunitários. Dentro desta perspectiva, uma série de artigos foi encomendada pela revista “Plos Medicine”, para auxiliar na extensão de tratamentos aos portadores de transtornos mentais nos países com número insuficiente de profissionais especializados7,8.
A expansão dos serviços comunitários e a redução do número de leitos disponíveis em hospitais psiquiátricos é objeto de constante debate na psiquiatria mundial. Por exemplo, a Associação Mundial de Psiquiatria (WPA – World Psychiatric Association), sob a liderança do professor Mario Maj, nomeou uma força-tarefa, coordenada pelo Prof. Graham Thornicroft, do Kings College em Londres, para delinear diretrizes sobre as etapas, os obstáculos e os problemas a serem evitados na implementação de serviços comunitários. O autor fez parte desta força tarefa que chamava atenção da necessidade de não excluir os psiquiatras deste processo, e que o planejamento de saúde mental deve ter participação ativa dos múltiplos profissionais envolvidos na assistência em conjunto com usuários e familiares, dentro do lema “Nothing about us without us”. Partindo-se do pressuposto que inexiste sistema de saúde mental que possa funcionar sem leitos para episódios críticos, a redução de leitos deve ser acompanhada de uma implantação de rede comunitária que se mostre eficiente no atendimento das necessidades de usuários e familiares. Quanto mais abrangente e eficiente for este sistema menor a necessidade de admissão hospitalar9.
O Brasil fez uma opção por serviços inovadores e intervenções comunitárias, com ênfase na expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e do Programa Volta para Casa. Os leitos em hospitais psiquiátricos foram paulatinamente sendo trocados por uma assistência com ênfase na comunidade. Há hoje uma variedade de serviços, em um sistema misto de programas ambulatoriais, hospitaldia, CAPS, leitos em hospitais psiquiátricos e enfermarias psiquiátricas no hospital geral10,11. Há cerca de 20 anos praticamente todo o orçamento de saúde mental era empregado nas internações hospitalares. Nos últimos anos pela primeira vez mais de 50% do orçamento foi dirigido para atividades extra-hospitalares. Não obstante, os transtornos mentais têm recebido reduzida prioridade no planejamento das políticas públicas nacionais, especialmente no que se refere à prevenção e promoção da saúde mental. As políticas nem sempre são fundamentadas nas experiências internacionais, muitas vezes predominando o carácter ideológico e/ou da credibilidade incondicional. Isso contrasta com avanços significativos na produção científica sobre determinantes biológicos, clínicos, sociais e, sobretudo, epidemiológicos dos transtornos psiquiátricos, desenvolvida por grupos de pesquisa brasileiros. Em resumo, os princípios fundamentais de orientação das políticas de saúde mental deveriam se basear nas necessidades de saúde pública, levar em consideração a proteção dos direitos humanos como ratificada pelas relevantes convenções da ONU e serem projetadas levando em conta sistemas de saúde mental baseados em evidência e custoefetividade12.
Referências
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5. Schramm, JMA, Oliveira, AF, Leite, ICL, Valente JG, Gadelha AMJ, Portela MC Campos MR. Transição epidemiológica e o estudode carga de doença no Brasil. Cien Saude Colet 2004; 9(4):897-908. [ Links ]
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