SUS, há 30 anos sobrevivendo ao colapso
A demanda por saúde pública não condiz com a capacidade do governo de financiá-la
Edison Ferreira da Silva *, O Estado de S.Paulo
Em 1988, ano em que o Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado, não havia muitos hospitais públicos no País e para que fosse possível cumprir a Constituição, que estabelecia “saúde universal e gratuita para todos os brasileiros”, o governo fechou acordo com as Santas Casas e os hospitais filantrópicos existentes. Pelo acordo, as entidades seriam remuneradas pelo atendimento prestado nos valores descritos pela Tabela de Procedimentos do SUS.
Na teoria, a parceria era perfeita – as entidades teriam ajuda financeira e o governo não precisaria construir hospitais. Na prática, o sistema criado tornou-se um grande peso para as entidades beneficentes. A desatualização da tabela do SUS foi o estopim de todas as dificuldades que Santas Casas e hospitais filantrópicos enfrentam. São mais de 15 anos sem nenhuma atualização. Os preços descritos na tabela não acompanharam a inflação e tampouco os gastos com os pacientes atendidos – a cada R$ 100 gastos pelas entidades o SUS reembolsa R$ 60. Um simples cálculo aritmético mostra que a conta não fecha.
Os últimos dois anos, marcados pela crise econômica e política no Brasil, se refletiram diretamente no SUS. Milhares de brasileiros perderam o emprego e, por consequência, seus planos de saúde privados. A rede pública, por sua vez, passou a receber mais pacientes – além de atendimento de emergência e urgência, o desemprego muitas vezes leva as pessoas à aflição e à tristeza e, com o psicológico em completa desordem, o corpo responde com o surgimento de doenças. Conclusão: mais pessoas na fila do SUS.
Com todas as adversidades deste cenário, as instituições tiveram de recorrer a diversos empréstimos em bancos públicos e privados, o que culminou em grande endividamento. Hoje a dívida das entidades está em torno de R$ 23 bilhões.
Nestes 30 anos de história, após muitas batalhas, algumas conquistas foram alcançadas, como isenções tributárias, a liberação de verbas emergenciais e a criação de linhas de créditos específicas para as Santas Casas e os hospitais filantrópicos, mas, infelizmente, não foram suficientes.
Com absoluta certeza, afirmo que as entidades fazem muito diante do que recebem dos governos federal, estaduais e municipais. E poderiam fazer muito mais se o acordo de 1988 fosse cumprido com hombridade. Talvez, os brasileiros não precisassem esperar meses para agendar uma consulta de urgência e passar horas em filas para pegar determinado remédio.
A saúde, por mais humana que seja a causa, também é um negócio. E num sistema democrático e capitalista, como o nosso, é preciso ter recursos para mover essa grande empresa e oferecer ao cidadão um serviço de qualidade.
Como representante sindical patronal, afirmo que existe uma imensa preocupação das Santas Casas e dos hospitais filantrópicos com os impactos de medidas trabalhistas e governamentais como as negociações coletivas, as imposições legais e as alterações constantes dos processos de gestão de recursos, como a imposição do sistema eSocial e o aumento do quadro de colaboradores, para cumprir exigências trabalhistas. Devemos destacar que inúmeras Santas Casas estão fechando no País; em São Paulo (casos de Louveira, Descalvado, Palmital, Assis) quantidade expressiva sofre numerosos problemas com a ausência dos repasses das prefeituras para o seu custeio, em especial a maior despesa para gestão de recursos humanos.
Ora, quem mais está sendo prejudicado pelo sistema é o povo humilde e desprovido de seu direito de cidadão preconizado no artigo 196 da Constituição Federal: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. No Brasil com mais 5.500 municípios, quase 52% só dispõem de um equipamento de saúde (uma Santa Casa). Se esta deixa de existir, como fica a população local?
Por isso, afirmo: todo gestor de Santa Casa, além de administrador, tem de ser equilibrista, driblar os obstáculos sem deixar a peteca cair. Esclarecendo a analogia: manter o bom atendimento à população mesmo diante das dificuldades diárias, como falta de recursos, médicos e infraestrutura.
O sistema de saúde pública do Brasil é o maior e também mais generoso do mundo, pois oferece às pessoas atendimento desde a saúde básica até atendimentos de média e alta complexidade, sendo modelo para a criação de sistemas de saúde em muitos países. A questão é que a demanda não é condizente com a capacidade de financiamento do governo.
No ano passado o ministro da Saúde, Ricardo Barros, disse que só seria possível mais espaço fiscal para a saúde se os gastos excessivos na Previdência fossem repactuados. Pois bem, a reforma da Previdência ainda não saiu do papel e me parece que não será feita em futuro muito próximo. Então, eu me pergunto: por mais quanto tempo as Santas Casas e os hospitais filantrópicos terão de viver enclausurados? E mais: por quanto tempo essas entidades sobreviverão se nada mudar?
Gostaria de apenas celebrar os 30 anos de existência do SUS, ressaltar seus grandiosos números de atendimento, trazer histórias de vidas que foram salvas, de famílias saudáveis e despreocupadas com filas e esperas. Mas, infelizmente, o meu desejo não está alinhado com a realidade do momento vigente.
Daqui a mais três décadas espero escrever o texto a que meu coração e todo cidadão de bem aspira. Mas para que isso seja possível entidades de saúde e governo devem aumentar o diálogo e compartilhar a mesma missão: a de valorizar a vida do cidadão brasileiro.
* PRESIDENTE DO SINDICATO DAS SANTAS CASAS DE MISERICÓRDIA E HOSPITAIS FILANTRÓPICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO (SINDHOSFIL/SP)