24 de dezembro de 2024

Hospital psiquiátrico público diminuiria violência

7 de janeiro de 200917min24

por Carlos Eduardo Rios do Amaral

Passados já dois anos de vigência da Lei Federal 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, como notoriamente constatado por todos aqueles que diariamente lidam com a problemática da violência doméstica e familiar contra a mulher — e aí não só os protagonistas do processo, como juízes, promotores, defensores públicos e advogados, mas, igualmente, assistentes sociais, psicólogos e serventuários da Justiça —, a maior causa, ou, pelo menos, aquela que mais se sobressai é a dependência do álcool e das drogas.

Essa sujeição química ao álcool e às drogas, inequívoca e indubitavelmente, constitui-se em fundamental desventura das mulheres vítimas de violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, em todo o Brasil.

Dentre as substâncias entorpecentes mais aflitivas, causadoras da dependência química de agressores, sobressaem a cachaça e a droga conhecida como crack.

O acesso constante a essa bebida extraída do melaço, permitida pelo salário, com a ausência de limitações para o uso, advindas da cultura brasileira, e o consumo dentro de uma lógica urbana (o “trago” após o trabalho), contribuíram para o consumo diário da cachaça. Esses fatores são determinantes para a instalação do quadro de dependência.

Quanto ao crack, esta droga deriva da planta da coca, resultante da combinação de cocaína, bicarbonato de sódio ou amônia e água destilada, resultando em grãos que são fumados em cachimbos. O seu surgimento se deu no início da década de 80, e o que possibilitou o fumo foi a criação da base de coca batizada como “livre”.

O consumo do crack é maior que o da cocaína, pois é mais barato. Por ser estimulante, ocasiona dependência física e, posteriormente, a morte por sua terrível ação sobre o sistema nervoso central e cardíaco. Devido a essa ação sobre o sistema nervoso, gera aceleração dos batimentos cardíacos, aumento da pressão arterial, dilatação das pupilas, suor intenso, tremores, excitação, maior aptidão física e mental. Os efeitos psicológicos são euforia, sensação de poder e aumento da auto-estima.

A dependência do crack se constitui em pouco tempo no organismo. Se inalado juntamente com o consumo de álcool — e essa é a regra entre os jovens nas periferias das grandes cidades brasileiras —, o crack aumenta o ritmo cardíaco e a pressão arterial, o que pode levar a resultados letais.

Deve se tornar claro que, ao contrário do que o leigo possa conjecturar, os sujeitos ativos — os agentes — dos delitos perpetrados contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, submersos na dependência do álcool ou das drogas, ou de ambos, não são apenas os maridos ou companheiros dessas pobres e infelizes mulheres.

A lastimosa constatação prática no dia-a-dia das audiências judiciais é assustadora, infeliz mesmo. São netos, bisnetos, filhos, enteados, sobrinhos, irmãos, cunhados, pais, padrastos, avôs, bisavôs. Sim, estes mais idosos também, entre outros membros do núcleo familiar e doméstico, são freqüentadores assíduos dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, na condição de acusados. São réus que cometeram verdadeiras atrocidades contra suas bisavós, avós, mães, madrastas, tias, irmãs, cunhadas, filhas, netas, e tantas outras do convívio íntimo diário.

A maior parte dessas atrocidades têm sincera e assombrosa comprovação de que foram praticadas em situação de fúria e euforia ocasionada pela dependência do álcool e das drogas.

Bem sabem os dedicados juízes das Varas de Família e Criminais do país afora que a maioria desses réus, em verdade, não são propriamente réus, mas zumbis, indivíduos ocos, destruídos pela cachaça e pela pedra do crack.

As próprias mulheres vítimas da repetida violência doméstica e familiar se aquartelam nos fóruns, gabinetes de promotores de Justiça e defensores públicos, clamando calorosa e insistentemente para que seus doentes — ao mesmo tempo, carrascos — sejam internados para tratamento de desintoxicação do álcool e das drogas, para cura definitiva da dependência.

Muitas — considere tranqüilamente a unanimidade delas, amigo leitor — são uníssonas e seguras em dizer que seus agressores são pessoas trabalhadoras, queridas na comunidade, cumpridoras de seus deveres familiares, bons pais, religiosos, mas, quando estão sob efeito do álcool e das drogas, “ninguém pode chegar perto”.

Por sua vez, os acusados, sem titubear, não negam o afirmado pelas suas amadas vítimas do convívio doméstico. Ao contrário, choram à mesa de audiência, relatam submissão a breves internações em casas de amparo sem nenhuma assistência psiquiátrica, alguns a rituais de exorcismo, também suplicando, todos esses, por tratamento médico eficaz, digno e curativo, para fazer cessar o sofrimento de seus familiares.

A verificação segura da dependência química, na maioria esmagadora dos casos, é impossível de ser aferida por um perito médico oficial ou nomeado. Eis que esses doentes viciados já chegam às audiências designadas completamente em estado desumano, em condições dignas de dó. Não são raros os casos em que, entre o intervalo de uma audiência e outra, faz-se necessário abrir portas, janelas e básculas, interrompendo os trabalhos, para que se esvaeça o forte odor de narcóticos ou bebida alcoólica. É que muitos acusados “tomam uma” — umas muitas, diga-se — ou se drogam, para perder a inibição em audiência, mas sem conseguir disfarçar o estado de ebriedade.

A decretação de medidas protetivas de urgência, cautelares para assegurar a incolumidade da ordem pública e da instrução para solução efetiva do processo, na tentativa de mitigar a dor e sofrimento da mulher, torna-se providência inócua contra esses acusados dependentes, porque eliminada a capacidade de discernimento e autodeterminação destes agressores. Os próprios devotados oficiais de Justiça, em suas certidões ao juízo, relatam que o cumprimento da medida, nestes casos, além de não ser socialmente recomendável, diante da verificação ocular no caso concreto, é tarefa impossível.

As próprias vítimas não desejam manterem-se afastadas de seus doentes agressores, debatem-se contra a ordem judicial de afastamento destes do lar. Querem, sim, que sejam tratados, curados, que sejam devolvidos ao convívio familiar livres da dependência do álcool e das drogas, como se fossem uma Fênix que ressurge de suas cinzas.

Desnecessário lembrar que a decretação de prisão preventiva, ou de qualquer uma das modalidades de prisão provisória previstas pela legislação processual penal, como uma espécie de profilaxia ministrada para a dependência do álcool e das drogas, extermina de uma só vez nossa Constituição Federal de 1988 e todos os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pela República Federativa do Brasil.

Inimputáveis, como cediço, não se sujeitam à prisão provisória, nem à pena corporal, mas, sim, a medida de segurança, nos termos do artigo 96 do Código Penal. Abandonamos, ainda que tardiamente, o odioso sistema do duplo-binário. Todavia, muitas comarcas do país não possuem hospital de custódia e tratamento psiquiátrico público para tratamento de agentes inimputáveis necessitados.

Noutras palavras, mais duras, só quem pode pagar as custosas despesas de um hospital psiquiátrico particular — coincidentemente, aqueles que não são assistidos pela Defensoria Pública — conseguem a imediata internação de seus queridos parentes, ou membros do núcleo doméstico.

Além disso, muitos dos hospitais psiquiátricos públicos que existem para fins de internação de dependentes estão saturados, e não comportam mais essa massa de doentes, dependentes do álcool e das drogas, que cresce assustadoramente a cada dia, em proporção inversa aos investimentos públicos em saúde mental.

O artigo 149, caput, do Código de Processo Penal, prescreve formalmente que, quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal.

Para o efeito desse exame, o acusado, se estiver preso, será internado em manicômio judiciário, ou, se estiver solto, e o requererem os peritos, em estabelecimento adequado — cadeia pública, não — para sua convalescença, que o juiz designar. Se os peritos concluírem que o acusado era, ao tempo da infração penal, irresponsável, o processo prosseguirá, com a presença do curador.

O juiz deverá, nesse caso, igualmente como acontece por ocasião do exame de insanidade, ordenar (revalidar) a internação do acusado em manicômio judiciário ou em outro estabelecimento adequado. Se a insanidade mental sobrevier no curso da execução da pena, o sentenciado será internado em manicômio judiciário, ou, à falta, em outro estabelecimento adequado, onde lhe seja assegurado tratamento.

Por fim, caso se verifique que a doença mental culminou com a infração, o processo continuará suspenso até que o acusado se restabeleça, ordenando-se, também, sua internação em manicômio judiciário ou em outro estabelecimento adequado.

Entrementes, não há como grande parte dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do país fazer cumprir com retidão essas disposições do Código de Processo Penal, no que tange à instalação do incidente de insanidade mental do acusado e sua internação compulsória em estabelecimento de saúde adequado, como preconizado pelo Código de Processo Penal em seus artigos 149 e 154. Porque, insista-se, na maioria esmagadora das comarcas do Brasil, não há manicômio judiciário, hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, ou outro estabelecimento adequado para os necessitados, à disposição das autoridades judiciárias.

Não se pode olvidar, também, que a própria mulher em situação de violência doméstica e familiar, principalmente aquela infeliz que durante anos a fio suportou calada o seu sofrimento, também pode desenvolver, como desenvolve, sérios e graves transtornos da mente, a depender de internação para duradouro tratamento psiquiátrico. E esse mal é reconhecido pelo próprio artigo 7o, inciso II, da Lei Maria Penha, que expressamente dispõe que a violência psicológica é uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras.

Não são raros, nos Juizados da Mulher, casos de vítimas desesperadas, que, quando convocadas para expor sua história em audiência, acabam por virar suas bolsas de ponta cabeça, despejando diversos comprimidos, ansiolíticos, medicamentos sedativos e hipnóticos em geral. Muitas, automedicadas, sem nenhuma auto-estima e perspectiva de felicidade.

Há, também, nos Juizados da Mulher, casos de vítimas carentes que já possuíam o transtorno mental antes mesmo do início de sua submissão à condição de pessoa violentada no âmbito familiar. E, por falta de recursos para internação em uma clínica particular — em razão da ausência de hospitais psiquiátricos públicos —, os agressores deixam de promover a internação de suas perseguidas.

O espetáculo é cruel. Muitas dessas mulheres — crianças, idosas ou adultas — são literalmente mantidas em cárcere privado em seus próprios casebres, acorrentadas ao pé da cama, onde ali mesmo defecam e urinam. Outras, costumeiramente, conseguem fugir e visitam o Juizado da Mulher para comunicar que continuam sendo objeto de flagelo.

Outrossim, há, também, aquelas agressoras — sim, as próprias mulheres na condição de acusadas —, agentes de crimes cometidos contra suas próprias familiares. Elas são portadoras de graves e sérios desvios comportamentais da personalidade, ocasionados pelos mais diversos motivos, inclusive e, da mesma forma, pelo vício do álcool ou das drogas, ou de ambos. Que, por igualmente não possuírem recursos, coabitam todos em ambiente extremamente intolerável.

Por conseguinte, devem os Governos federal, estadual e municipal investirem sinceramente na construção de hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico dignos, para internação e tratamento das doenças mentais, notadamente para aquelas relacionadas ao problema do álcool e das drogas. Atenuar-se-ia, assim, a violação dos Direitos Humanos contra a mulher.

Revista Consultor Jurídico, 2 de janeiro de 2009

Sobre o autor
Carlos Eduardo Rios do Amaral: é defensor público do estado do Espírito Santo


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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