23 de dezembro de 2024

Verdade inconveniente

6 de novembro de 201910min38
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Por Ronaldo Laranjeira*

O adiamento da votação da liberação do plantio de maconha para fins medicinais foi bom

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) adiou pela segunda vez a votação sobre a liberação do plantio de maconha para fins medicinais. A medida da Anvisa foi, para dizer o mínimo, positivamente cautelosa. Se houver de fato algum composto na maconha com papel terapêutico, isso ainda precisará ser comprovado pela ciência com outros estudos. Qualquer substância usada para tratamentos tem de ser considerada como remédio. Ou seja, tem de passar por levantamentos longos e controlados antes de ser utilizada. Não há milagres na medicina.

A discussão em torno da eficácia medicinal da maconha impõe, naturalmente, um olhar mais amplo, que desembarca em seu uso recreativo. São coisas diferentes, é claro, mas cabe lembrar do antigo dito popular: “Será que a grama do vizinho é sempre mais verde?”. Nem sempre. No Brasil, quando falamos sobre políticas públicas relacionadas à maconha, é muito comum a população, a imprensa e até governantes buscarem modelos que estão sendo praticados em outros países para verificar quais medidas relacionadas ao assunto poderiam ser aplicadas em território nacional. É fundamental analisar exemplos, principalmente os de sucesso, realizados mundo afora. Japão, Suécia e Islândia têm um consumo muito baixo de maconha. Já nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia quase 20% dos jovens consomem a droga diariamente. Não podemos, nunca, perder de vista o fato de cada nação ter sua peculiaridade. Iniciativas que funcionam em alguns lugares fracassam em outros. Não é possível generalizar, sob o risco de serem postas à mesa políticas de saúde pública inócuas. Calma e bom-senso são fundamentais — e, acima de tudo, o rigoroso acompanhamento científico. Há evidências que o lobby a favor da legalização da Cannabis joga para debaixo do tapete, numa pressão indevida, movida a modismos, alimentada por argumentos rasos. Recentemente, divulgaram-se alguns artigos científicos de extrema relevância sobre o assunto, mas infelizmente eles não chegaram ao conhecimento de grande parte da população. Foram escondidos talvez porque revelem verdades inconvenientes, que batem de frente com o movimento que propõe a autorização da maconha, como remédio ou simples barato.

“Quem usa a droga na adolescência tem um risco 37% maior de ter depressão na vida adulta”

Em fevereiro deste ano, uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo, o JAMA Psychiatry, divulgou um artigo que traz uma conclusão alarmante: quem usa maconha na adolescência tem um risco maior de desenvolver depressão ou comportamento e pensamento suicidas na vida adulta. O que diferencia esse artigo? Os pesquisadores analisaram os resultados de onze trabalhos internacionais publicados com os melhores critérios científicos, envolvendo, no total, 23 317 participantes acompanhados da adolescência à fase adulta. Eles foram divididos em dois grupos: um era composto de pessoas que consumiram maconha até os 18 anos e o outro formado por aqueles que não usaram a droga nesse mesmo período. O que se fez foi medir o impacto real da Cannabis na vida adulta (até os 32 anos) desses participantes, por meio de sofisticadas análises estatísticas. E os resultados impressionam — de forma negativa. Quem usa maconha na adolescência tem um risco 37% maior de ter depressão na vida adulta do que quem não fez uso da droga nesse período. As conclusões não param por aí. Esses mesmos usuários também têm 50% mais probabilidades de apresentar pensamentos suicidas e um risco de tentativa de suicídio três vezes maior do que aqueles que não consumiram maconha. Tal análise confirma vários estudos anteriores que demonstraram a vulnerabilidade do cérebro em sua fase de desenvolvimento, dos 15 aos 25 anos, quando exposto às drogas. As características desse trabalho, como número de usuários, período de observação e credibilidade dos dados analisados, além da metodologia utilizada, o elegem como um dos mais relevantes já feitos nessa área. É errado, inaceitável mesmo, ignorá-lo. Não se trata de achismo, e sim de ciência de primeira linha, com uma resposta clara: o uso da maconha na adolescência tem, sim, um impacto significativo na vida adulta, podendo levar até ao suicídio.

Outro estudo relativamente recente, liderado pelo pesquisador Jordan Bechtold, também demonstrou os perigos do consumo de Cannabis pelos jovens. E mais: o pesquisador Edison Manrique-Garcia sugere que indivíduos com longo histórico de uso de maconha, desde a mocidade, possuem um risco de morte maior do que os que não utilizam a droga. Os pesquisadores chegaram a essa conclusão analisando a taxa de mortalidade entre tais segmentos. Na área da medicina, sou categórico em afirmar que, quanto mais dados científicos confiáveis forem apresentados, informações que possam embasar tratamentos ou políticas públicas, melhor será. Isso deveria ser praxe, e não exceção. Em tempo de fake news e da divulgação de um grande volume de estudos questionáveis, esses dados assumem relevância ainda maior. Os Estados Unidos são bom exemplo. Ao contrário do que muitos acreditam, a maconha não foi legalizada no país, apenas em alguns estados. A grande maioria deles, como o Mis­sis­sip­pi, rejeitou a legalização. Cada vez mais, os dados científicos mostram que ter 20% da população jovem usando maconha regularmente põe em risco o próprio desenvolvimento econômico do país, sem falar na incapacitação, que coloca um peso enorme para as famílias. Tudo somado, não há como fugir do que experiências anteriores entregam — maconha não é brincadeira, e convém, antes de qualquer passo, muita discussão.

Vivemos no Brasil, aqui e agora, a adoção, na prática, de um projeto de lei afeito a representar um enorme avanço na política nacional de prevenção e tratamento contra o consumo de drogas. Trata-se do PLC 37, de autoria do ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB), aprovado em 2013 na Câmara e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em junho deste ano. O projeto propõe uma nova Política Nacional sobre Drogas no Brasil. Ele busca promover o alinhamento com a Política Nacional de Saúde Mental, oferecer programas de prevenção e de tratamento baseados em evidências, além de ampliar as abordagens terapêuticas, hoje focadas na prática de redução de danos. É atalho para que o poder público possa ampliar a oferta de cuidados adequados às necessidades de cada paciente. O projeto também aprimora a definição dos papéis das esferas municipal, estadual e federal em relação às medidas de prevenção e tratamento, assim como a distinção entre traficantes (que terão penas mais severas) e usuários, sendo que para esses últimos continua a ser aplicada uma lei que despenaliza o consumidor e evita que ele seja preso por portar drogas para uso próprio.

Parece inquestionável aos olhos da ciência: as evidências condenam a maconha e exigem, automaticamente, políticas públicas responsáveis. Nesse aspecto, a cautela com as versões medicinais é boa, ainda que no futuro próximo elas venham a se mostrar realmente úteis.


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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