Está gerada a controvérsia. Segundo Thomas Kuhn, filósofo da ciência, controvérsias são um ótimo meio de explorar a natureza das coisas. A controvérsia que me refiro foi gerada pela atitude da ANVISA de colocar em consulta pública a liberação do registro de medicamentos a base de
cannabis. Em reação, um ministro do atual governo
criticou a iniciativa como um “primeiro passo para legalizar a maconha no Brasil”.
Respondeu o diretor da ANVISA que isso nada tem a ver com uso recreativo, que o intuito é “aumentar acesso a medicamentos a base de cannabis” e que “não há nenhum tipo de risco do uso de
Cannabis medicinal”.
Merece discussão, pois ao denominar cannabis de “medicamento” o diretor gera a conotação de eficácia e ao falar em “nenhum risco” surge uma conotação de segurança.
Portanto, cabe-nos questionar, há comprovação científica para eficácia e segurança da maconha nas inúmeras indicações propostas?
Prescrever uma substância é um ato profissional, que deve ser respaldado na comprovação de qualidade do produto. A qualidade de uma droga é sua eficácia. Já o uso recreativo é opção de cada um, não é um ato médico, requerendo menor grau de respaldo da eficácia.
Eu posso optar por fazer uma caminhada diária pela orla, ao lado de amigos, e esse agradável hábito não precisa ser precedido pela comprovação de benefício clínico. Já a prescrição de uma programa de exercício com fins de reabilitação clínica necessita de comprovação.
Portanto, embora o uso medicinal pareça ser algo mais restritivo (menos preocupante socialmente) do que a liberação do uso recreativo, o primeiro requer maior nível de evidência. O uso medicinal tem maior ônus da prova do que o uso recreativo. Esse pensamento não parece ser considerado pelo diretor que argumenta que uso recreativo “é um problema policial”, e banaliza o uso medicinal como se esse fosse plenamente justificado por ser simplesmente chamado de medicinal. Parece-me faltar uma “polícia científica” em seu pensamento.
Precisamos analisar a probabilidade científica do cannabis ser eficaz. Sabemos que isso depende das plausibilidade biológica que determina a probabilidade pré-teste da hipótese e das evidências científica que comprovam a ideia (ensaios clínicos randomizados).
Primeiro vamos à plausibilidade. Em minha
última postagem comentei da pequena plausibilidade biológica da acupuntura em melhorar angina do peito através da inserção de agulhas em local remoto ao coração.
Cannabis é diferente disso, há uma evidente plausibilidade biológica para sua eficácia.
A plausibilidade está na existência de receptores canabinoides que servem para serem estimulados por endocanabinoides que nosso organismo produz. Portanto, ao administrar cannabis estamos estimulando um sistema fisiológico existente. É a administração de uma substância cuja natureza é feita para reagir a ela.
No entanto, plausibilidade não garante eficácia. Plausibilidade apenas gera hipótese de eficácia. Sendo assim, o diretor não pode confiar nos receptores canabinoides, precisa de evidências para respaldar seu argumento de eficácia.
Sendo assim, fui à pesquisa. Teria que ser uma extensa pesquisa, pois as indicações do cannabis são inúmeras, a exemplo de esquizofrenia, dor neuropática, doença de chron, colite ulcerativa, epilepsia, demência, náusea durante quimioterapia, fibromilagia, artrite reumatóide, esclerose múltipla, Síndrome de Tourette. Achei que seria um esforço hercúleo analisar cada uma dessas indicações. No entanto, começou a ficar fácil quando pesquisando revisões sistemáticas na Cochrane percebi que as conclusões eram sempre as mesmas.
Esquizofrenia: Results are limited and inconclusive due to the small number and size of randomised controlled trials available and quality of data reporting within these trials.
Doença de Chron: The effects of cannabis and cannabis oil on Crohn’s disease are uncertain. Thus no firm conclusions regarding the efficacy and safety of cannabis and cannabis oil in adults with active Crohn’s disease can be drawn.
Colite Ulcerativa: The effects of cannabis and cannabidiol on UC are uncertain, thus no firm conclusions regarding the efficacy and safety of cannabis or cannabidiol in adults with active UC can be drawn.
Dor Neuropática: The potential benefits of cannabis-based medicine (herbal cannabis, plant-derived or synthetic THC, THC/CBD oromucosal spray) in chronic neuropathic pain might be outweighed by their potential harms. The quality of evidence for pain relief outcomes reflects the exclusion of participants with a history of substance abuse and other significant comorbidities from the studies, together with their small sample sizes.
Epilepsia: No reliable conclusions can be drawn at present regarding the efficacy of cannabinoids as a treatment for epilepsy.
Demência: This review finds no evidence that cannabinoids are effective in the improvement of disturbed behaviour in dementia or in the treatment of other symptoms of dementia.
Náusea por Quimioterapia: Methodological limitations of the trials limit our conclusions and further research reflecting current chemotherapy regimens.
Fibromialgia: We found no convincing, unbiased, high quality evidence suggesting that nabilone is of value in treating people with fibromyalgia.
Artrite Reumatóide: There is currently weak evidence that cannabis are all superior to placebo in reducing pain in patients with RA.
Esclerose Múltipla: The absolute and comparative efficacy and tolerability of pharmacotherapies to treat ataxia in MS are poorly documented and no recommendations can be made to guide prescribing.
Síndrome de Tourette: Not enough evidence to support the use of cannabinoids in treating tics and obsessive compulsive behaviour in people with Tourette’s syndrome.
E quanto à segurança mencionada pelo diretor? Esse link mostra uma revisão canadense, que menciona 11 revisões sistemática sobre o assunto, sendo consistente a comprovação de que existem eventos adversos. Afinal, a existência do preço (consequências não intencionais) é sempre uma garantia de qualquer conduta, enquanto o retorno (benefício) é uma possibilidade. Todo investimento é garantia de custo e possibilidade de ganho. Este pensamento está no cerne da filosófica por traz da economia clínica.
Em resumo, “Compared to placebo, medical cannabinoids cause multiple different adverse events in patients, from visual disturbance or hypotension (1 in 3-10) to hallucination or paranoia (1 in 20). Stopping due to adverse effects occurs in 1 in every 8-20 patients. Regardless of the type of medical cannabinoid used, adverse events are common and likely underestimated.”
Estamos assim em uma situação inusitada. A autoridade máxima da autarquia que serve de filtro para a liberação de medicamentos parece cometer equívocos científicos. Dado o benefício da dúvida, talvez o diretor tenha cometidos esses equívocos porque estava irritado com as colocações do tal ministro. Acho que Thomas Kuhn diria que no Brasil moderno as controvérsias tomam um formato anti-científico, pouco construtivas. Parecem mais brigas do que controvérsias.
Mas voltando ao tema, como podemos falar em liberação de algo para fins medicinais, sem que o efeito medicinal seja comprovado? Como podemos fazer uma consulta ao público de algo sem evidências científicas?
O contexto da consulta ao público se justificaria se houvesse eficácia comprovada, a qual precisasse ser ponderada à luz das consequências não intencionais da liberação. Seria como decisão compartilhada em medicina. Não há sentido em discutir com um paciente adotar versus não adotar uma conduta terapêutica que não tenha comprovação. Primeiro algo precisa ser validado como conduta, para depois haver a ponderação da recomendação com base em valores e preferências do paciente (na decisão compartilhada) ou da sociedade (na consulta pública).
Acho totalmente válido discutir legalização da maconha recreacional. Mas não temos base para discutir maconha medicinal. Medicina é profissão.
Isso tudo dá razão à provocação do ministro de que “estão querendo legalizar a maconha no Brasil”. Pois se não há base para considerar cannabis um medicamento, sua liberação está sendo baseada em fantasia. E fantasia tem um cunho muito mais recreativo do que medicinal.