23 de dezembro de 2024

Efeitos do Uso da Cannabis no Comportamento Humano, Incluindo Cognição, Motivação e Psicose: uma Revisão da Literatura

3 de junho de 201676min3771
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Nora D. Volkow, MD; James M. Swanson, PhD; A. Eden Evins, MD; Lynn E. DeLisi, MD; Madeline H. Meier, PhD; Raul Gonzalez, PhD; Michael A. P. Bloomfield, MRCPsych; H. Valerie Curran, PhD; Ruben Baler, PhD

Tradução de Luís Guilherme Vieira Allegro

Tendo como pano de fundo o debate político sobre os riscos e benefícios potenciais do uso da cannabis, a onda da legalização e liberalização continua a se expandir. Quatro estados norte-americanos (Colorado, Washington, Oregon e Alaska) e o Distrito de Columbia promulgaram leis que legalizam a cannabis para o uso recreativo de adultos, e vinte e três outros estados, além do Distrito de Columbia, atualmente regulamentam o uso da cannabis para propósitos medicinais. Tais mudanças políticas podem implicar um amplo escopo de consequências imprevistas, com efeitos profundos e duradouros sobre os sistemas sociais e de saúde dos EUA. O uso da cannabis passa a constituir um dentre vários fatores em interação recíproca que pode afetar o desenvolvimento cerebral e as funções mentais. Com o objetivo de auxiliar o discurso político a partir de evidências científicas, a literatura sobre o assunto foi revista para que se identificasse o que se sabe e o que ainda é desconhecido acerca dos efeitos do uso da cannabis no comportamento humano, incluindo a cognição, a motivação e questões relativas à psicose. JAMA Psychiatry. doi:10.1001/jamapsychiatry.2015.3278 Publicado online em 3/2/2016.

Já é bastante conhecido que o uso da cannabis causa um comprometimento agudo da habilidade cerebral em reter informações (capacidade cognitiva). Assim, ocorrem déficits temporários na aprendizagem e na memória, na atenção e na memória operacional (ou de trabalho).

O USO DA CANNABIS AFETA A CAPACIDADE COGNITIVA?

O uso da cannabis causa um comprometimento agudo do aprendizado e da memória, da atenção e da memória operacional (1-3), mas não é tão evidente que o uso da cannabis esteja associado a comprometimentos neuropsicológicos duradouros. Estudos de caso-controle comparando usuários abusivos da substância que não estejam sob seu efeito e não-usuários revelou de modo bastante consistente que o usuário abusivo apresenta pior desempenho em testes neuropsicológicos. Por exemplo, os resultados de duas meta-análises separadas (4,5) revelou que, quando comparados com não-usuários, os usuários de cannabis que não estejam sob seu efeito apresentam pior desempenho em medidas da função neuropsicológica global, com tamanhos do efeito em domínios neuropsicológicos específicos (funções executivas, atenção, aprendizado e memória, habilidades motoras e habilidades verbais) de aproximadamente um terço do desvio padrão, ou menos. Quando análises na segunda meta-análise (5) foram limitadas para 13 estudos de usuários da cannabis com pelo menos 1 mês de abstinência, não houve diferença perceptível entre os usuários de cannabis e os não-usuários no que se refere ao desempenho em testes neuropsicológicos, o que sugere que as funções neuropsicológicas podem se recuperar com a abstinência prolongada. As evidências sugerem que a magnitude do comprometimento neuropsicológico e sua extensão após a abstinência podem depender da frequência e da duração do uso da cannabis, da extensão da abstinência, e da idade do indivíduo no início do uso. (6)

Vêm surgindo evidências que sugerem que os adolescentes podem ser particularmente vulneráveis aos efeitos adversos do uso da cannabis. A adolescência representa um período crítico do neurodesenvolvimento, caracterizado por uma pronunciada poda sináptica e pelo aumento da mielinização (7). Além disso, o sistema endocanabinóide parece estar envolvido na regulação de processos neurodesenvolvimentais cruciais (7), o que sugere que a introdução de canabinóides exógenos durante a adolescência pode comprometer o desenvolvimento cerebral normal. Pesquisas realizadas em animais corroboram a possibilidade de que a adolescência represente um período de vulnerabilidade aumentada à exposição à cannabis. (7). Por exemplo, ratos púberes tratados com um agonista canabinóide apresentaram déficits persistentes em tarefas de reconhecimento de objeto, ao passo que isso não ocorreu em ratos adultos. (8,9). Evidências crescentes em relação aos humanos apontam na mesma direção que as descobertas referentes aos animais. Por exemplo, alguns estudos mostraram que quanto mais precoce é a idade em que se inicia o uso da cannabis, maiores são as associações com o comprometimento neuropsicológico (10, 11). Um estudo longitudinal representativo da população, de 2012, (12) mostrou que usuários frequentes que iniciaram o uso de cannabis durante a adolescência (mas não os que se iniciaram na idade adulta) apresentaram declínio neuropsicológico entre as idades de 13 e 38 anos.

Investigações por neuroimagem de usuários adolescentes e adultos produziram resultados algo inconsistentes. Análises recentes demonstraram que há evidências bastante claras de alterações estruturais em regiões temporais mediais (amídala e hipocampo), frontais e cerebelares associadas à exposição à cannabis (13, 14). Contudo, outro estudo recente (15), que cuidadosamente comparou os participantes no que se refere ao consumo de álcool, não apresentou evidências de alterações morfológicas cerebrais entre os usuários adolescentes ou adultos, o que sugere a possibilidade de que o uso comórbido de álcool possa explicar algumas das alterações morfológicas observadas na pesquisa anterior. Existem, além disso, evidências de que os usuários da cannabis apresentem comprometimento da conectividade neural. Por exemplo, um estudo (16) de adultos com um longo histórico de uso abusivo de cannabis apresenta evidências de conectividade diminuída na fímbria direita do hipocampo (fórnix) e do esplênio do corpo caloso, e nas fibras comissurais. Finalmente, investigações realizadas por meio de imagens de ressonância magnética funcional sugerem que os usuários de cannabis apresentam atividade neural alterada tanto em estado de repouso quanto durante testes cognitivos (14). Por exemplo, usuários adolescentes masculinos apresentaram, nas imagens de ressonância magnética funcional, um aumento de atividade dependente do nível do oxigênio no sangue ocorrendo no córtex pré-frontal durante uma nova tarefa de memória operacional, o que foi interpretado como refletindo processamento ineficaz (17). Essa observação se coaduna com estudos medindo a conectividade funcional em repouso em usuários adolescentes da cannabis que apresentaram padrões alterados de conectividade afetando tanto o trânsito inter-hemisférico (18) como a rede fronto-temporal (19,20). Algumas evidências sugerem que o canabidiol, outro canabinóide encontrado na planta da cannabis (embora normalmente em concentrações muito baixas), pode oferecer proteção a alguns dos efeitos nocivos do tetrahidrocanabinol (THC) sobre a cognição (21,22).

Essas são áreas que necessitam de pesquisas complementares. Em primeiro lugar, diferenças observadas no desempenho de testes neuropsicológicos, bem como na estrutura e função cerebrais, podem refletir diferenças individuais pré-existentes ao uso da cannabis. O progresso das pesquisas vem sendo limitado pela recorrência de investigações transversais comparando os usuário da cannabis e os não-usuários. Dois estudos longitudinais (12,23), em que foram realizados testes neuropsicológicos anteriores e posteriores, apresentaram evidências que permitem associar o uso da cannabis e o declínio da função neuropsicológica no âmbito individual. Esses resultados não puderam ser explicados a partir de fatores como: uso de álcool ou outras drogas, transtornos psiquiátricos, baixo status sócio-econômico, ou toda uma gama de outros fatores complicadores. Entretanto, o número de usuários de cannabis nessas coortes foi pequeno, e o imageamento cerebral não foi realizado. Contudo, resultados de neuroimagem levantam a possibilidade de que volumes cerebrais regionais menores entre usuários da cannabis possam ser parcialmente explicados pela presença de diferenças pré-existentes. Por exemplo, um estudo longitudinal prospectivo (24) revelou que volumes do córtex orbitofrontal menores aumentavam o risco de que adolescentes se iniciassem no uso da cannabis, ao passo que um estudo (25) de gêmeos e irmãos revelou que volumes reduzidos da amídala entre usuários da cannabis poderiam ser explicados por fatores familiares. Considerados em conjunto, esses resultados ressaltam a necessidade de estudos longitudinais que acompanhem adolescentes do período anterior ao período posterior ao início do uso da cannabis e combinem testes neuropsicológicos e neuroimagens. O Estudo do Desenvolvimento Cognitivo do Cérebro do Adolescente (Adolescent Brain Cognitive Development Study) (26), uma ampla investigação prospectiva financiada pelos National Institutes of Health, de crianças entre 9 e 10 anos que serão acompanhadas por pelo menos 10 anos, está sendo iniciada para atender, em parte, a essa necessidade.

Uma segunda área propícia para investigações adicionais diz respeito à necessidade de reconciliação dos resultados de neuroimagem com o desempenho em testes neuropsicológicos. As evidências de neuroimagem atuais são inconsistentes, e alterações na estrutura e função cerebrais tendem a não se correlacionar com diminuições no desempenho em testes neuropsicológicos (27). São necessárias maiores amostras para o imageamento, juntamente com considerações cuidadosas acerca das características dos participantes, tais como o uso comóbido de álcool e outras drogas e a extensão da abstinência da cannabis.

Em terceiro lugar, são necessárias mais pesquisas para que se possa responder à questão “quando é que podemos falar em uso excessivo de cannabis?”. Uma vez que muitas amostras de estudo incluem uma grande parcela de indivíduos apresentando dependência da cannabis (conforme definido pelo DSM-IV), não está claro se os efeitos podem ser generalizados para indivíduos com transtornos ligados ao uso da cannabis menos severos e para usuários de caráter mais recreacional.

Em quarto lugar, devido ao efeito potencial de canabinóides exógenos sobre o desenvolvimento cerebral, mais pesquisas são necessárias para que se possa responder à pergunta “em qual idade a cannabis causa maior malefício?”. Além de estudar os efeitos do uso da cannabis em adolescentes, também são necessárias pesquisas que lancem luz sobre a suscetibilidade de adultos mais velhos para o comprometimento neuropsicológico associado à cannabis. Essa parcela da população experimenta mudanças na plasticidade cerebral e declínio cognitivo relacionados à faixa etária que podem torná-la mais vulnerável aos efeitos do uso da cannabis.

Em quinto lugar, evidências recentes sugerem diferenças relacionadas ao gênero em déficits neuropsicológicos associados ao uso da cannabis (1, 28). Assim, pesquisas futuras devem esclarecer os mecanismos na base dessas potenciais diferenças relativas ao gênero.

Em sexto lugar, fatores genéticos, tais como polimorfismos nos genes COMT (OMIM 116790) e AKT1 (OMIM 164730) podem também aumentar a suscetibilidade ao comprometimento neuropsicológico ligado a uso da cannabis (29). Outros exemplos incluem um estudo recente (30) que revelou que o THC causa o comprometimento agudo da memória operacional para portadores de COMTVal/Val (mas não para portadores de Met), além de um outro estudo (31) de três coortes de população que revelou que o uso da cannabis estava associado com a espessura cortical diminuída entre indivíduos masculinos com alto (mas não com baixo) risco genético de esquizofrenia conforme indexado por uma pontuação de risco poligênica. A possibilidade que diferenças individuais entre usuários da cannabis possam ter efeitos significativos e possam servir para prever a extensão de consequências adversas sugere que esforços recentes para incrementar informações genéticas com vistas a criar pontuações de risco poligênicas possam ser úteis no desenvolvimento dos estudos sobre uso de cannabis e funções neuropsicológicas.

 

O USO DA CANNABIS DIMINUI A MOTIVAÇÃO?

Já em fins do século XIX, a Indian Hemp Drugs Commission [Comissão de Drogas de Maconha] (32) relatava que o uso abusivo de cannabis estava associado à apatia, definida como motivação reduzida para comportamentos direcionados a um objetivo (33). Todavia, foi apenas após o pronunciado aumento no uso da cannabis durante os anos 60 que os efeitos motivacionais do uso crônico da cannabis foram ligados a comprometimentos no aprendizado e na atenção sustentada. O termo síndrome amotivacional da cannabis (cannabis amotivational syndrome) foi proposto por McGlothlin e West (34), que o definiram como apatia e capacidade reduzida para concentração, para a adoção de rotinas ou para a aquisição de novos conhecimentos. Embora sempre tenha havido alguma polêmica em relação à necessidade de se definir um fenótipo tão preciso, existem evidências que o uso abusivo de cannabis a longo prazo esteja associado a dificuldades no desempenho escolar e ao comprometimento da motivação, os quais, conforme se sugeriu, podem ser entendidos como mediadores potenciais de resultados funcionais piores (35).

Existem evidências pré-clínicas e clínicas que estão de acordo com a ideia de que o uso da cannabis esteja associado a estados amotivacionais. Entre os macacos resos, a utilização ou a administração crônica e abusiva de cannabis resultou na queda da motivação, conforme mensurado em testes operantes de relação progressiva e de resposta a posição condicionada (36). Existem evidências laboratoriais preliminares apontando uma relação entre usuários de cannabis e motivação reduzida para comportamentos relativos a recompensa, quando comparados com indivíduos-controle. (37). Como tais resultados parecem estar relacionados a doses repetidas de THC, é provável que a motivação reduzida possa ser um dos caminhos que conduzem ao comprometimento da aprendizagem, pois o THC pode obstaculizar o aprendizado baseado em recompensas (38). Coadunando-se a essa teoria, os usuários da cannabis apresentam capacidade reduzida de síntese da dopamina estriatal (39), com relacionamento inverso com a amotivação. Na medida em que a sinalização dopaminérgica apoia a motivação (40), o comprometimento da síntese de dopamina poderia estar na base do estado amotivacional entre os usuários da cannabis. Da mesma maneira, investigações por imagem apontaram uma reatividade diminuída ao estímulo de dopamina em usuários de cannabis, o que foi associado a emotividade negativa, e que também poderia contribuir para reduzir o empenho em atividades que não estejam relacionadas à droga (41).

A amotivação em usuários crônicos abusivos pode também refletir o fato de que a própria cannabis tenha se tornado um motivador principal, de modo que outras atividades (como, por exemplo, as tarefas escolares) se tornam diminuídas na hierarquia de recompensas do indivíduo. De fato, a dependência da droga ocorre em cerca de 9% dos usuários (42) que parecem mais vulneráveis do que outros em função de uma multiplicidade de variáveis, incluindo a idade no início do uso, o nível de uso e fatores ambientais e genéticos.

O que ainda precisa ser verificado é se mudanças na concentração dos ingredientes ativos da cannabis podem afetar o risco da amotivação ou de adição. A planta da cannabis contém aproximadamente 100 ingredientes canabinóides exclusivos, sendo que os mais pesquisados são o THC e o canabidiol. Ao longo dos últimos 30 anos, o nível de THC presente na cannabis de rua aumentou (43). Entre esses dois compostos, apenas o THC determina o nível do “barato” subjetivo. Juntamente com um sistema de dopamina com eficácia reduzida (blunted) (41), o uso crônico abusivo da cannabis é associado a mudanças no sistema endocanabinóide, incluindo níveis reduzidos de anandamida (um ligante endógeno dos repectores canabinóides) no fluído cérebro-espinhal humano (44) e níveis diminuídos de receptores canabinóides 1 (45). De fato, toda uma literatura pré-clínica crescente tem apontado o envolvimento dos receptores canabinóides 1 e seus ligantes endógenos com os efeitos motivacionais decorrentes do uso da cannabis (46). Assim como ocorre com a associação do uso da cannabis ao comprometimento cognitivo, é possível estabelecer, de modo inequívoco, se o uso da cannabis é causa, consequência ou correlato da motivação alterada. Pesquisas adicionais são necessárias para que se determine se os efeitos amotivacionais potenciais se relacionam com os transtornos do uso da cannabis em vez de estarem ligados ao uso da cannabis per se.

 

O USO DA CANNABIS AUMENTA O RISCO DE PSICOSE?

Uma das maiores controvérsias relacionadas ao uso da cannabis diz respeito ao seu efeito sobre o risco de transtornos psiquiátricos, em especial transtornos psicóticos e a esquizofrenia plenamente desenvolvida. Investigações longitudinais revelam uma sólida associação entre o uso de cannabis por adolescentes e a psicose. O uso da cannabis é considerado um fator de risco evitável para a psicose (47). A ligação entre o uso da cannabis e a esquizofrenia pode derivar de uma causalidade direta, de interações genético-ambientais, de etiologias compartilhadas ou da auto-medicação para sintomas pré-morbidos, embora alguns pesquisadores tenham sugerido que apenas as três primeiras hipóteses permaneçam questões em aberto (48-50). A emergência esporádica de dados conflitantes não deve surpreender, tendo-se em vista a natureza desse problema biológico específico. Por exemplo, os efeitos da exposição à cannabis podem ser modestos na população total e dependentes da presença de múltiplas variáveis genéticas e ambientais. Por outro lado, persiste uma polêmica duradora e legítima em relação a que proporção do risco de psicose pode ser atribuída ao uso da cannabis e, também, em relação a até que ponto indivíduos sem predisposição genética podem desenvolver a doença.

Apesar dessa ambiguidade, existem fortes evidências fisiológicas e epidemiológicas sugerindo uma ligação mecânica entre o uso da cannabis e a esquizofrenia. O tetrahidrocanabinol (principalmente em altas doses) pode causar psicose aguda, transitória e dependente da dose (sintomas positivos e negativos similares aos esquizofrênicos) (51). Além disso, estudos epidemiológicos, longitudinais e prospectivos apontam uma associação recorrente entre o uso da cannabis e a esquizofrenia, em que o uso da cannabis antecede a psicose (52) independentemente do consumo de álcool (53) e mesmo após a remoção (52, 54) ou o controle (55, 56) daqueles indivíduos que utilizaram outras drogas. Embora o período prodrômico anterior à doença plenamente instalada crie dificuldades para que se determine se o uso da cannabis precede os sintomas, ou se reflete uma tentativa de tratá-los, o uso da cannabis precedeu a psicose nesses estudos (52, 54, 57). Além disso, o uso persistente da cannabis após o primeiro episódio está associado com piores prognósticos (58) mesmo após o controle de outros usos de substâncias (59).

Embora o uso da cannabis possa ter sido interrompido muito tempo antes do surgimento da psicose, a idade em que se dá o início do uso da cannabis parece se relacionar com a idade em que eclode a psicose, o que sugere uma relação causal em relação ao início da psicose que independe do uso de fato (49, 60, 61). A associação entre o uso da cannabis e a psicose crônica (incluindo um diagnóstico de esquizofrenia) é maior naqueles indivíduos que fizeram uso abusivo ou frequente da cannabis durante a adolescência (53, 54, 60, 62, 63) ou em períodos anteriores (52), ou que utilizaram cannabis com THC de alta potência (60, 62). A partir desses estudos, estima-se que o uso constante da cannabis aumente em aproximadamente duas vezes o risco de esquizofrenia, o que explica de 8% a 14% dos casos (55), enquanto o uso frequente ou o uso de cannabis com THC altamente potente aumentam o risco de esquizofrenia em seis vezes (53). Coadunando-se a essa ideia, a maior disponibilidade do receptor canabinóide tipo 1 que teria sido encontrada em alguns pacientes com esquizofrenia (64, 65), e que se correlaciona com sintomas negativos (66), pode também contribuir para uma sensibilidade aumentada aos efeitos psicotogênicos do uso da cannabis. Nesse contexto, é importante ressaltar que a maioria dos indivíduos que usam cannabis não desenvolve esquizofrenia. Portanto, embora o uso de cannabis não seja necessário nem suficiente para o desenvolvimento da esquizofrenia, evidências disponíveis sugerem que o uso da cannabis pode dar início ao surgimento de doenças psicóticas duradouras em algumas pessoas (mais provavelmente indivíduos com vulnerabilidade genética) (67), e esse resultado nos convida a sérias reflexões do ponto de vista das políticas públicas de saúde.

Tem se tornado cada vez mais claro que a psicose aguda, os transtornos esquizofreniformes e a esquizofrenia são o resultado da interação de múltiplos fatores diversos operando em vários níveis. Por exemplo, a presença de um membro familiar próximo que seja portador de esquizofrenia é o mais poderoso fator de risco para a esquizofrenia; contudo, poucos investigadores associando o uso da cannabis e a esquizofrenia controlaram especificamente o risco de esquizofrenia familiar. Os resultados de um estudo (68) sugerem que o uso da cannabis pode levar à esquizofrenia em indivíduos com um histórico familiar da doença, quando comparados com indivíduos sem esse histórico. Todavia, o controle do risco familiar em um grande estudo epidemiológico (69) atenuou consideravelmente, embora não tenha completamente eliminado, a associação do uso da cannabis e a esquizofrenia, com razão de chances de 3,3 e 1,6 com atrasos temporais de 3 e 7 anos respectivamente.

Possíveis interações de três vias entre genótipo, uso da cannabis e psicose também foram analisadas. O genótipo DRD2 (OMIM 126450) influenciou na probabilidade de transtorno psicótico em indivíduos que usavam cannabis (70). Entre usuários ocasionais e usuários diários de cannabis, portadores do DRD2, rs 1076560, alelo T tiveram 3 vezes e 5 vezes maiores probabilidades de transtorno psicótico, respectivamente (70). Relatou-se, também, que o polimorfismo funcional COMTVal-158 modera o efeito do uso de cannabis durante a adolescência sobre a psicose adulta, de modo que era mais provável que os portadores desse alelo desenvolvessem transtornos esquizofreniformes se eles usassem cannabis do que os indivíduos não-portadores desse alelo (67). Em um estudo experimental sobre o THC (71), portadores do COMTVal apresentaram maior comprometimento cognitivo após exposição ao THC, e maior número de sintomas psicóticos, do que portadores do COMT Met/Met. Também foi relatado um genótipo AKT1 por interação com o uso da cannabis, sendo que aqueles indíviduos que apresentavam genótipos C/C rs 2494732 e que também utilizavam cannabis apresentaram o dobro das chances de apresentar um transtorno psicótico (72). Em outro estudo (73), os participantes portadores do genótipo AKT1C/C que faziam uso constante ou uso diário da cannabis apresentaram, respectivamente, probabilidades duas e sete vezes maiores de desenvolver transtorno psicótico quando comparados com usuários e usuários diários que fossem portadores T/T.

Os resultados que apoiam a hipótese que algumas variantes genéticas influenciam na probabilidade do desenvolvimento da esquizofrenia, mediante a exposição a certos aspectos ambientais (por exemplo, o uso de cannabis), refletem tentativas, ainda iniciais e hesitantes, de encontrar resultados dentro de um pequeno número de indivíduos, e que necessitam ser repetidas. (74). Uma explicação alternativa seria a de que indivíduos com alto risco genético de esquizofrenia tenham maior propensão a usar a cannabis através de um risco genético compartilhado de esquizofrenia e de transtornos do uso de cannabis. De fato, o relatório recente de um estudo de associação genômica ampla (75) de uma associação entre alelos de riscos de esquizofrenia e uso da cannabis sugere que uma parte da associação entre a esquizofrenia e o uso da cannabis pode se dever a uma etiologia genética compartilhada. Contudo, em um estudo (63), o uso de cannabis com THC de alta potência foi fortemente associado ao desenvolvimento posterior de esquizofrenia, ao passo que a recentemente apresentada pontuação de risco poligênica de esquizofrenia (76) não foi relacionada ao uso de cannabis ou à potência da cannabis utilizada (77).

Finalmente, assim como ocorre com usuários crônicos ou abusivos de cannabis (78), pacientes com esquizofrenia também apresentam volumes reduzidos da amídala e do hipocampo (79). Essa observação pode contribuir para explicar os piores resultados clínicos em indivíduos esquizofrênicos que usam cannabis, pois é provável que essas mudanças morfológicas estejam na base da exacerbação dos sintomas esquizofrênicos associada à cannabis, ou contribuam para tal exacerbação (80).

 

CONCLUSÃO

Décadas de legislações mal-informadas ou condescendentes em relação às drogas legais e ilegais impuseram à nossa sociedade um terrível preço a ser pago em termos de saúde. Está claro que o efeito cumulativo da exposição à nicotina e do uso de álcool sobre a morbidade e a mortalidade é enorme. Além disso, é preciso considerarmos os efeitos altamente nocivos da “guerra contra as drogas”, realizada pela justiça criminal, sobre as populações minoritárias e desfavorecidas. Os esforços atuais visando a legalização do uso da cannabis têm sido orientados sobretudo por uma combinação de ativismo popular, engenhosidade farmacológica e busca privada de altos lucros, com uma preocupante desconsideração das evidências científicas, das lacunas em nosso conhecimento, ou da possibilidade de consequências imprevistas. Tendo-se em vista o papel crucial e de amplo escopo do sistema endocanabinóide no cérebro (81-83), a utilização crescente da cannabis e o aumento dos transtornos relativos a esse uso ao longo das últimas décadas, assim como o aumento da concentração de THC na planta da cannabis, é preciso esclarecer quais aspectos da exposição à cannabis (por exemplo, a idade no início do uso, a quantidade usada, a frequência do uso, a duração do uso, e a potência da cannabis utilizada) apresentam maiores riscos no que diz respeito ao desenvolvimento de transtornos do uso da cannabis e à eclosão de outras consequências adversas (por exemplo, déficits cognitivos, falta de motivação, ou psicose). Além disso, existem muitas questão que ainda não obtiveram resposta, e que se relacionam mais diretamente com a qualidade de políticas rapidamente implementadas. Por exemplo, a propaganda será permitida? Quais padrões de uso e efeitos tóxicos associados surgirão se os cigarros elétricos de maconha se tornarem difundidos ou até mesmo um hábito cotidiano entre os adolescentes? Como o aumento de usuários de cannabis gestantes pode afetar o desenvolvimento dos fetos expostos a essa prática? Finalmente, quais são as consequências do fumo passivo da cannabis?

Se nos deixarmos levar pela tendência atual, é provável que sejam descobertos efeitos que eram raros no passado unicamente pelo fato de que o uso não era então tão disseminado quanto o das drogas legais. As populações vulneráveis, tais como crianças, adolescentes, idosos ou indivíduos com outros transtornos, podem experimentar efeitos tóxicos inéditos (assim como potenciais benefícios). A transformação do cenário em que se dá o uso da cannabis (por exemplo, os problemas decorrentes de THC mais potente, novos meios de administração da droga [como inalação do vapor da maconha e maconha comestível] e novas combinações da droga) e o surgimento, em nossa cultura, de novas normas e percepções levantam a possibilidade de que nosso conhecimento atual, sempre limitado, possa se aplicar apenas aos modos pelos quais a droga foi utilizada no passado.

As áreas exploradas nesse artigo, que refletem apenas um subconjunto dos múltiplos efeitos do uso da cannabis sobre o cérebro e sobre o corpo, não fazem jus à onipresença do sistema de sinalização canabinóide. Portanto, além de expandir nossas pesquisas básicas, devemos aprender o máximo e mais rápido que pudermos com as mudanças em curso nas políticas locais, para que assim possamos minimizar os danos e maximizar os potenciais benefícios.

INFORMAÇÕES SOBRE O ARTIGO

Apresentado para publicação em 9/10/2015. Revisão final recebida em 8/12/1015. Aceito em 10/12/2015.

Publicação online em 3/2/2016. doi: 10.1001/jamapsychiatry.2015.3278.

Afiliações dos autores: National Institute on Drug Abuse, National Institutes of Health, Bethesda, Maryland (Volkow, Baler); Child Development Center, University of California, Irvine (Swanson); Center for Addiction Medicine, Department of Psychiatry, Massachusetts General Hospital, Boston (Evins); Harvard Medical School, Boston, Massachusetts (Evins); Veterans Affairs Boston Healthcare System, Harvard Medical School, Brockton, Massachusetts (DeLisi); Department of Psychology, Arizona State University, Tempe (Meier); Center for Children and Families, Department of Psychology, Florida International University, Miami (Gonzalez); Division of Psychiatry, University College London, Londres, Inglaterra (Bloomfield); Psychiatric Imaging Group, Medical Research Council Clinical Sciences Centre, Hammersmith Hospital, Londres, Inglaterra (Bloomfield); Clinical Psychopharmacology Unit, Clinical Health Psychology, University College London, Londres, Inglaterra (Curran).

Contribuição dos autores: O Dr Volkow teve pleno acesso a todos os dados no estudo e assume responsabilidade pela integridade dos dados e pela correção da análise dos dados. Concepção do estudo de todos os autores. Aquisição, análise e interpretação dos dados: Volkow, Swanson, Evins, DeLisi, Meier, Gonzalez, Bloomfield, Curran. Produção do manuscrito realizada por todos os autores. Revisão crítica do manuscrito: todos os autores. Análise estatística: Swanson, Evins, DeLisi, Meier, Gonzalez, Bloomfield, Curran. Financiamento obtido por Volkow, Swanson, Evins, DeLisi, Meier, Gonzalez, Bloomfield, Curran. Apoio administrativo, técnico ou material: Volkow, Baler.

Exposição de conflitos de interesse: O Dr. Swanson declara ter recebido apoio de Alza, Richwood, Shire, Celgene, Novartis, Celltech, Gliatech, Cephalon, Watson, CIBA, Janssen, e de McNeil; declara ter prestado serviços como consultor nos conselhos da Alza, Richwood, Shire, Celgene, Novartis, Celltech, UCB, Gliatech, Cephalon, McNeil, e Eli Lilly; declara ter prestado serviços nos grupos de discussão da Alza, Shire, Novartis, Celltech, UCB, Cephalon, CIBA, Janssen, e McNeil; e declara ser consultor da Alza, Richwood, Shire, Celgene, Novartis, Celltech, UCB, Gliatech, Cephalon, Watson, CIBA, Jansen, McNeil, e Eli Lilly. O Dr Evins declara prestar serviços como consultor e como analista de financiamentos para o Pfizer Global Research Awards for Nicotine Dependence (GRAND) Grants Program [Programa de Bolsas para Pesquisas sobre Dependência de Nicotina da Pfizer Global]. Nenhum outro conflito de interesses foi relatado.

Financiamento/apoio: este trabalho foi parcialmente financiado pelas seguintes instituições:

Forum Pharmaceuticals, que apoiou financiamento R01 DA030992 do National Institute of Drug Abuse, e Pfizer, que apoiou financiamento R01 DA021245 do National Institute of Drug Abuse (Dr Evins); National Institutes of Health Intramural Research Program (National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism) usando, sob contrato, a infra-estrutura do Brookhaven National Laboratory DE-AC02-98CH10886 (Dr Volkow); financiamento R01 DA021576 do National Institute of Drug Abuse (Dr DeLisi); United Kingdom Medical Research Council, National Institute of Health Research, e British Medical Association (Dr Bloomfield); e um financiamento concedido pelo United Kingdom National Institute of Health Research Biomedical Research Council to King’s College London, além de um financiamento da United Kingdom Medical Research Council (Dr Curran).

Papel do financiador/patrocinador: as agências de financiamento não participaram da concepção e da condução do estudo; da coleta, análise e interpretação dos dados; da preparação, revisão ou aprovação do manuscrito.

REFERÊNCIAS

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Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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