23 de dezembro de 2024

O papel das relações familiares na iniciação ao uso de drogas de abuso por jovens institucionalizados

19 de setembro de 201048min74

Revista da Escola de Enfermagem da USP
version ISSN 0080-6234 Rev. esc. enferm. USP vol.44 no.1 São Paulo Mar. 2010 doi: 10.1590/S0080-62342010000100002

El papel de las relaciones familiares en la iniciación del abuso de drogas ilícitas por parte de jóvenes institucionalizados

Catia Campaner Ferrari BernardyI; Magda Lúcia Félix de OliveiraII

IMestre em Emfermagem, Docente do Departamento de Emfermagem da Universidade Norte do Paraná, Arapongas,PR, Brasil. ccfbernardy@bol.com.br
IIDoutora em Emfermagem. Docente do Departamento de Emfermagem da Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil. micoleao@wnet.com.br


RESUMO

O estudo objetivou analisar o papel das relações familiares na iniciação ao uso de drogas de abuso por parte de jovens cumprindo medidas sócio-educativas, considerando a gravidade dos problemas que o uso de drogas acarretou ao jovem e à sua família. Estudo do tipo descritivo e transversal, com delineamento de série de casos. Foi desenvolvido nos municípios de Rolândia e Cambé-PR, no Centro de Recuperação Vida Nova, com jovens institucionalizados e seus responsáveis, no mês de março de 2007. Como fonte de dados, utilizou-se os prontuários institucionais, e como instrumento de coleta de dados, dois formulários para entrevista. A análise foi feita pela comparação dos dados, seguindo a técnica de análise de conteúdo. Foram estudadas 11 famílias. Sinais de negligência e abandono, agressão física e falta de diálogo familiar e, principalmente, a cultura do uso de drogas no ambiente familiar determinaram a iniciação ao uso de drogas de abuso.

Descritores: Relações familiares; Drogas ilícitas; Adolescente institucionalizado.


RESUMEN

El estudio tuvo como objetivo analizar el papel de las relaciones familiares en la iniciación del abuso de drogas ilícitas por parte de jóvenes cumpliendo medidas socioeducativas, considerando la gravedad de los problemas que el uso de drogas acarreó a los jóvenes y a su familia. El estudio, del tipo descriptivo y transversal, con delineamiento de serie de casos, fue desarrollado en los municipios de Rolândia y Cambé (Paraná, Brasil), en el Centro de Recuperação Vida Nova, con jóvenes institucionalizados y sus responsables, durante el mes de marzo de 2007. Como fuente de datos, se utilizaron los legajos institucionales, y como instrumento de recolección de datos, dos formularios para entrevista. El análisis fue hecho por comparación de datos, siguiendo la técnica de análisis de contenido. Fueron estudiadas 11 familias. Señales de negligencia, abandono, agresión física, falta de diálogo familiar y, principalmente, la cultura de abuso de drogas ilícitas en el ambiente familiar, se mostraron como factores determinantes para la iniciación del abuso de drogas ilícitas.

Descriptores: Relaciones familiares; Drogas ilícitas; Adolescente institucionalizado.


INTRODUÇÃO

As drogas de abuso são definidas como substâncias consumidas por qualquer forma de administração, que altera o humor, o nível de percepção ou o funcionamento do sistema nervoso central. Estas drogas podem ser lícitas ou ilícitas, desde medicamentos, álcool, até maconha, crack, solvente e outras drogas(1).

O uso e abuso de drogas constituem um fenômeno complexo, com origem e conseqüências do tipo biológico, psicológico e social(2). É analisado como um sintoma familiar, visto como uma forma de lidar com os conflitos, a função deste sintoma é denunciar a falha no sistema familiar e indicar mudanças no seu comportamento com o jovem(3).

Entre os fatores de risco ao uso de drogas de abuso pelas crianças e jovens estão o uso de drogas pelos pais, a não integração às atividades escolares, a desestrutura familiar, a violência doméstica, a pressão de grupo e a necessidade de integração social, a busca pela auto-estima e pela independência familiar(2).

A família está implicada no desenvolvimento saudável ou não de seus membros, pois ela é compreendida como o elo entre as diversas esferas da sociedade(4). A relação familiar, a atitude e comportamento dos pais e irmãos são modelos importantes para os jovens, e atuam como fator de proteção para o uso de drogas(5).

Os jovens enfrentam importantes situações que afetam o seu futuro e bem-estar. Ao terminar esta etapa de suas vidas, os jovens estão iniciando muitas situações que determinarão sua forma de vida. Todavia, estão descobrindo seus interesses e talentos e adquirindo responsabilidades; estas fases constituem a experiência de ser jovem(6). O uso e abuso de drogas fazem parte de uma situação que está associada à fragilidade e limitação do jovem para responder criativamente às situações difíceis impostas pela vida(7).

O uso abusivo de drogas acarreta prejuízos aos jovens, à família e à sociedade, traduzidos em repetência escolar, perda de emprego, rupturas familiares e violência, crimes, acidentes e encarceramentos(4).

Estima-se que 39% das ocorrências policiais a cada ano estejam relacionadas ao uso de álcool e que 50% dos internamentos por problemas psiquiátricos estejam relacionados ao abuso de álcool e de drogas(8).

OBJETIVO

O presente estudo teve por objetivo analisar o papel das relações familiares na iniciação ao uso de drogas de abuso por jovens institucionalizados e cumprindo medidas sócio-educativas, considerando a gravidade dos problemas que o uso de drogas acarretou ao jovem e à sua família.

MÉTODO

Trata-se de um estudo de caráter descritivo e transversal, com um delineamento de série de casos, adotando o jovem e sua família como unidades analíticas.

Foi realizado em duas unidades do Centro de Recuperação Vida Nova (Cervin), situado nos municípios de Rolândia e Cambe – Paraná, que tem por finalidade o tratamento e ressocialização de usuários de drogas de abuso. A sede no município de Rolândia atende usuários do sexo masculino e oferece um programa específico para jovens de 12 a 18 anos e outro para adultos, com idade a partir dos 18 anos, e a Unidade de Cambé atende jovens do sexo feminino a partir de 12 anos.

A chácara do Cervin é classificada como unidade de semiliberdade, pois o jovem é afastado do convívio familiar e da comunidade, mas permanece com o direito de deslocamento. Um dos princípios da entidade é a liberdade de escolha quanto à adesão ao tratamento.

Os sujeitos do estudo foram os jovens, de ambos os sexos, institucionalizados no Cervin no mês de março de 2007, e um familiar responsável pelo jovem. Os critérios para inclusão dos jovens no estudo foram a idade entre 12 e 18 anos e a existência de referência familiar.

Como fontes de dados foram utilizados os prontuários institucionais dos jovens e como instrumento de coleta de dados foram utilizados dois roteiros para entrevistas, um aplicado ao jovem institucionalizado e um aplicado ao familiar. Para identificar o jovem e seu familiar utilizou-se a numeração de um a onze.

Os prontuários são arquivados nas sedes do Cervin e contêm informações de identificação do jovem; características sociais; uso de drogas; características da internação; características da família; história médica; e problemas com a justiça.

Os roteiros para entrevista foram constituídos por perguntas abertas e fechadas, divididas em três fases. Na primeira fase do roteiro aplicado ao jovem utilizou-se a numeração de um a onze que se correlacionava aos dados de sua caracterização, estes dados estavam registrados em uma planilha elaborada pela autora, após terem sido compilados dos prontuários. A segunda fase do roteiro abordava perguntas para obter características sócio-econômicas e demográficas da família – renda familiar, assistência à saúde, religião definida, envolvimento em atos infracionais, tipo de lazer. A fase três foi elaborada para obter dados sobre a iniciação do jovem ao uso de drogas e as relações familiares – responsável pelo jovem na infância, relacionamento do jovem com seu responsável, agressão física por membros da família, comunicação familiar, uso de drogas na família, motivo da institucionalização, comportamento da família frente ao uso de drogas e os fatores que o levaram ao uso de drogas.

O formulário aplicado ao familiar difere do roteiro anterior apenas na primeira fase. A identificação do respondente compreende os seguintes itens: idade, sexo, estado civil, número de filhos, escolaridade, profissão e grau de parentesco com o jovem.

Algumas informações coletadas durante as entrevistas com os jovens e seus familiares foram registradas em um diário de campo, preenchido no período máximo de uma hora após o término de cada entrevista.

No primeiro momento da coleta de dados foram acessados os prontuários dos jovens institucionalizados e, na mesma data, foi realizada entrevista individual com o jovem, em sala reservada nas dependências do Cervin, com a finalidade de preservar o sigilo do diálogo.

A segunda etapa foi a entrevista com um familiar dos jovens, realizada preferencialmente com a mãe. As entrevistas ocorreram aos domingos de visita familiar ao jovem institucionalizado, denominado domingão. Nesta ocasião os familiares participam de oficinas com os profissionais do Cervin, almoçam com os jovens e podem permanecer na instituição até o final da tarde.

As entrevistas foram realizadas pessoalmente pela pesquisadora com onze jovens e com nove familiares. Dois familiares foram entrevistados por assistentes sociais do município de origem. Estes profissionais tinham conhecimento prévio da história de vida do jovem e haviam realizado contatos com o familiar anteriormente.

Os dados obtidos pela entrevista com o jovem e seu familiar foram comparados entre si, descritos e analisados, seguindo a técnica temática da análise de conteúdo(9).

O estudo seguiu as normas regulamentadoras para pesquisa em seres humanos. O projeto de pesquisa foi submetido à apreciação do Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos – COPEP, da Universidade Estadual de Maringá, sendo aprovado com parecer nº 043/2007.

RESULTADOS

Os 11 jovens institucionalizados no Cervin eram, em sua maioria, do sexo masculino e tinham idade entre 13 e 18 anos, com predominância de idade entre 14 e 17 anos. Foram encaminhados para institucionalização por ordem judicial, sendo quatro jovens encaminhados com o auxílio do conselho tutelar, a pedido da família.

A droga de abuso utilizada inicialmente pela maioria deles foi a maconha, consumida diariamente, sendo substituída gradativamente pelo crack, relatada como a droga utilizada por nove jovens no momento da internação. Todos afirmaram consumir a droga nas ruas e dois destes jovens também a consumia em casa.

Entre os familiares entrevistados, nove era do sexo feminino e sete destas mulheres eram mães dos jovens. A idade dos familiares variou entre 31 e 65 anos, sendo que grande parte tinha menos de 50 anos, vários casamentos, um grande número de filhos e baixa escolaridade. Apenas um familiar entrevistado exercia atividade formal no mercado de trabalho no momento da entrevista.

Apenas quatro jovens conviviam em família nuclear, constituída por pai, mãe e irmãos; quatro jovens foram filhos de mãe adolescente e um jovem perdeu sua mãe por falecimento ainda na infância. Grande parte das famílias afirmou praticar como lazer familiar o almoço aos domingos e apenas uma família não tinha uma religião definida.

Em dez famílias havia envolvimento de outro membro, além do jovem, com drogas de abuso e em seis famílias outro membro já se envolvera em atos infracionais.

Quanto ao papel da família na iniciação ao uso de drogas pelo jovem, seguindo a metodologia do estudo, as respostas do jovem e seu familiar, foram comparadas. As informações contidas no material das entrevistas foram selecionadas em quatro categorias: conhecendo o cuidador principal e seu relacionamento com o jovem, identificando a violência intrafamiliar, compartilhamento de decisões no grupo familiar e iniciando o uso de drogas.

Com relação aos responsáveis pelo cuidado do jovem na infância, encontrou-se uma tendência à figura da mãe – citada como cuidadora única por quatro jovens e por quatro familiares, associada ao pai por quatro jovens e por um familiar, e associada à avó por três familiares.

A separação conjugal e a constituição de mais de uma união civil faz parte da vida das sete mães entrevistadas, podendo explicar a indicação do pai como familiar responsável pelo cuidado na infância por apenas três jovens.

A forma como os pais se separam e como se relacionam após a separação com o ex-cônjuge e com os filhos, assim como a forma de comunicar a decisão a eles e a continuidade do exercício responsável do papel parental são fatores decisivos, capazes tanto de provocar prejuízos à formação das crianças como de ajudar a reduzir os danos causados pela separação(10).

Nas Famílias 1, 2 e 8 foram encontrados sinais de negligência e abandono: a mãe do Jovem 8 estava sob privação de liberdade e o pai desaparecido; a mãe do Jovem 1 se recusava a ter contato com ele após sua institucionalização; e o jovem 2 queixava do cuidado das irmãs, numa família de dez irmãos que permaneceram com o pai após a separação dos pais.

No que diz respeito ao relacionamento do jovem com o cuidador principal na infância, oito jovens e seis familiares afirmaram que era bom, mas apenas um familiar afirmou que era muito bom. Houve concordância nas respostas em seis famílias. Destas, apenas em uma família o relacionamento foi relatado como regular; os demais afirmaram ser bom.

Quanto à violência intrafamiliar típica, avaliada pela agressão física ao jovem durante a infância, seis jovens e sete familiares relataram atos de agressão física intradomiciliar, chamando atenção o fato desta prática estar presente, então, em sete famílias.

Com relação ao compartilhamento das decisões entre os membros do grupo familiar, os jovens afirmaram que as decisões nunca eram compartilhadas ou compartilhadas esporadicamente, e apenas um familiar referiu que freqüentemente a família se reunia para esta prática.

Os fatores que possivelmente levaram o jovem ao início do uso da droga, foi a categoria que mais teve desacordos entre as respostas do jovem e seu familiar. Os jovens tiveram dificuldades para identificar estes fatores. Alguns não conseguiram descrevê-los, outros atribuíram à curiosidade, à influência familiar e dos amigos. Para os familiares, estes fatores foram identificados como falta de carinho dos pais, ciúmes entre os irmãos e, em maior proporção, à supervalorização da influência dos pares.

 

DISCUSSÃO

Conhecendo o Cuidador Principal e seu Relacionamento com o Jovem

A mãe é considerada figura essencial em todo o processo de desenvolvimento e educação do filho, seu relacionamento com ele têm início na gestação, continuando por toda vida(11). Porém, a presença da mãe como figura essencial na infância dos jovens estudados, pode ter sido pela ausência de estrutura familiar nuclear, como narrado pela Família 4.

Tive contato com meu pai até quatro anos mais ou menos, eu ia passar Natal e Ano Novo com ele, depois minha mãe falou que o cara foi para São Paulo trabalhar, mudou o telefone (ficou quieto) (Jovem 4, 13 anos).

Quando ele nasceu eu não quis que o pai o visse, quando ele tinha uns 4 anos liguei para ele, então começou a visitá-lo de vez em quando e passar o Natal e Ano Novo. Isso durou 2 anos, depois ele foi trabalhar na Lapa em São Paulo e mudou o telefone e nunca mais tive contato (Familiar 4, 31 anos, mãe).

Houve discordância na resposta sobre o responsável familiar apenas na Família 1. Embora este jovem convivesse com o pai e a avó, informou apenas o pai como seu responsável, sendo que o familiar entrevistado referenciou a avó. O jovem relata que o pai é alcoólico e por várias vezes chegava em casa quebrando tudo e batendo nele e no irmão, e (nestas situações) saiam para a rua e a avó ia para a casa de uma tia. Atenuava os problemas com o pai em virtude da falta de amor advindo da mãe.

Meu pai não tem o poder do dinheiro, ele já perdeu muito dinheiro bêbado na rua e já gastou muito com bebida, teve vez da gente comer só arroz, mas pá […] Meu pai estava ali […] Agora minha mãe não, ela me vendeu quando eu era pequeno (Jovem 1, 17 anos).

Em cinco famílias, o cuidado da criança foi visto de forma ampliada, havendo a participação de mais membros dessas famílias. Quatro famílias tinham a avó como coadjuvante neste processo, porém, observou-se em duas famílias a influência conflitante da avó na vida dos jovens.

Quando meu filho nasceu, minha mãe e a mãe do pai do meu filho não deixaram a gente ficar junto. Minha mãe não me deixou nem registrar, acabei aceitando, mas me arrependo disso até hoje (Familiar 4, 31 anos, mãe).

[…] o pai dele sumiu no mundo assim que ele nasceu, o menino ficou um tempo com a mãe dele, depois foi morar comigo (avó), daí fui para Curitiba e devolvi ele para a mãe, porque iria ser difícil de trazê-lo para ela ver. Daí ele começou a mexer com essas bobeiras. A mãe dele fazia corrupção de menor e foi presa. Ela já disse que não quer mais ele, falou para eu ficar com ele. Bom, eu vou ver né, se ele ficar bom eu fico (Familiar 8, 51 anos, avó).

A negligência, o abandono e a privação de cuidados são considerados uma forma de violência intrafamiliar. Esta violência é caracterizada pela ausência, recusa ou falta de atenção necessária a quem deveria receber atenção e cuidados. Geralmente expõe o jovem a maus tratos, atraso escolar, abuso sexual, entre outros problemas(12).

A violência intrafamiliar é definida como toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica de um membro da família, podendo ocasionar danos diretos ou indiretos a todas as pessoas da família, nas diversas fases de suas vidas(13).

Em estudo realizado com jovens infratores, os autores(11) encontraram um número importante de jovens que não tiveram os cuidados iniciais realizados pela mãe, seja por trabalho ou pela falta de interesse e afeto pelo filho. Geralmente, eram deixados com familiares – irmãos mais velhos, avós, ou tias – e poucos jovens foram deixados em creches ou com pessoas fora da família. Ficavam nas ruas brincando e envolvendo-se em atividades ilícitas enquanto a mãe estava fora de casa(11).

Ainda em cinco famílias, a mãe não possuía uma união estável e todos os jovens, cujas mães tinham se casado novamente ou já haviam se relacionado com vários parceiros, afirmaram não ter um bom relacionamento com seus padrastos.

A única jovem entrevistada, afirmava um bom relacionamento com a mãe, e seu familiar afirmava dificuldades de relacionamento dela com o pai.

Ela não gosta de jeito nenhum do pai dela, porque ele nunca deu carinho, sempre foi ruim para ela, ela não contava para mim, mas ele falava. É que ela é lenta no serviço de casa, e o meu marido gosta de tudo limpo e ela não dá conta (Familiar 11, 39 anos, mãe).

Eu acho que ele a trata mal porque ele diz que ela não é filha dele, porque ela é muito linda e não parece com ele. Agora para o mais novo ele dá o mundo, tudo que ele compra ou faz é para esse mais novo (Familiar 11, 39 anos, mãe).

A partir desses relatos, verificou-se em muitas famílias sinais de negligência e abandono: a falta da mãe, o alcoolismo de pais e a mágoa de jovens em relação a seus genitores.

Identificando a violência intrafamiliar

A agressão física significa o uso da força para produzir lesões, traumas, feridas, dores ou incapacidades em alguém. O impacto da agressão física para o jovem, em instituições de proteção como a família, costuma ter efeitos negativos em seu desenvolvimento. Estes jovens vítimas de espancamento geralmente são mais agressivos ou, contraditoriamente, têm comportamentos de medo ou apatia(12).

A punição física ainda é bastante utilizada na educação dos filhos. Os pais tendem a defender esta maneira de disciplinar, levando-a a banalização e tornando crônica a violência intrafamiliar. A agressão na infância, relacionada aos efeitos destrutivos, aos vínculos familiares e às funções protetoras que a família deveria desempenhar, podem levar o jovem a repetir este comportamento violento(12).

Apenas um jovem respondeu de maneira diferente ao seu familiar com relação à agressão física. Este jovem nega maus tratos físicos e considera o ato de apanhar como correção por seu mau comportamento, porém, sua mãe afirma que o jovem já foi agredido fisicamente por dois de seus padrastos. A mãe deste jovem assume verbalmente a responsabilidade pela condição do filho.

Minha mãe casou quando eu tinha 7 anos, teve um filho e uma filha, meu padrasto era alcoólatra, ficou várias vezes internado, mas não adiantou nada […] aí ela se separou e depois casou novamente, teve outro filho, o segundo é bem melhor, ele me batia, mas era pra me corrigi né. Ele me batia, eu saia de casa e ficava na rua um mês, voltava, ele batia de novo, até que fui preso (Jovem 4, 13 anos).

Meu primeiro marido batia em mim e no meu filho depois de usar droga. […] eu me separei depois casei novamente, tive mais um filho. Este marido é muito bom, ele me ajuda a educar todos com igualdade. Ele deu duas surras no meu filho com cinto e machucou, ele mesmo disse que nunca mais iria fazer isso (Familiar 4, 31 anos, mãe).

Foi possível identificar que os relatos de agressão física foram feitos apenas quando esta prática deixou lembranças tristes e intensas na vida do jovem. O fato de os jovens sofrerem agressões físicas de seus pais, em situações de punição mais leve, tem uma conotação normal na vida deles, principalmente quando o ato é infligido pela mãe(10).

A violência intrafamiliar vem por séculos formando uma cultura que se expressa em usos, costumes, relações e atos. Algumas crenças fundamentam a violência intrafamiliar, entre elas: o homem é o chefe, o dono, o que sabe o que é bom ou ruim para todos, exclui-se do julgamento dos demais; a criança para ser educada precisa ser castigada e punida pelo pai, pela mãe e seus substitutos. Estas crenças são discriminatórias e contribuem para a produção de uma série de problemas que impedem o desenvolvimento do jovem(12).

Quando eu era criança, era triste mesmo […] apanhava da minha mãe porque ela falava para eu não fazer as coisas aí é que eu fazia. Não sei, sempre fui assim (Jovem 3, 15 anos).

Agora eu falo para o meu marido, quando ele vai ficar bravo com meu outro filho, eu já falo para ele manerar, não na frente do menino né, mas falo (Familiar 6, 54 anos, mãe).

Compartilhamento de Decisões no Grupo Familiar

Em sete entrevistas houve concordância entre as respostas do jovem e seu familiar. É importante ressaltar que, em seis destas, a família nunca compartilhava decisões, e em uma família esta prática foi relatada como sendo vivenciada esporadicamente.

Quanto à discordância entre as respostas, dois jovens disseram nunca haver este tipo de prática em suas famílias, e seus dois familiares responderam que esporadicamente este evento estava presente no grupo familiar. Os familiares tentaram transmitir a idéia de que não havia muitos conflitos no ambiente familiar, atribuindo a situação dos jovens ao convívio com seus pares.

Nunca dava para conversar, meu pai sempre estava bêbado. Minha mãe já falei, só quer saber dela (Jovem 1, 17 anos).

Às vezes quando tinha alguma coisa importante, a gente conversava (Familiar 1, 50 anos, tia).

Meu pai só sabia bater […] quando ele entrava por uma porta eu saía pela outra. Daí comecei a roubar na rua para comprar droga e me envolvi em vários processos […] fiquei respondendo por 11 anos, por 4 anos prestei serviço para o Estado (carpindo datas) até que fiquei preso 1 ano e 8 meses e pedi para vir para cá, para fugir da cadeia (Jovem 9, 18 anos).

Às vezes a gente conversava sim (Familiar 9, 48 anos, mãe).

Considerando o diálogo familiar como fator protetor ao uso de drogas e o papel da estabilidade, do respeito mútuo e do suporte familiar para a resistência dos jovens às adversidades, o grupo estudado apresentava vários fatores que contribuíram para o uso de drogas.

Iniciando o Uso de Drogas

Apenas um jovem respondeu de forma semelhante ao seu familiar, atribuindo o uso de drogas às suas amizades e a ausência da mãe no ambiente familiar. Este jovem tinha como escolaridade o ensino fundamental incompleto, era filho de pais separados, relatou baixa renda familiar, convivia com o pai e irmãs, e reconhecia sua mãe como alcoólatra e seu irmão paterno como usuário de drogas.

Dos 10 jovens que responderam em desacordo ao seu familiar, quatro afirmaram no primeiro momento que não sabiam identificar os fatores que os levaram ao uso da droga. Porém, no decorrer da entrevista, dois jovens identificaram alguns fatores (Jovem 1 e 5).

Não sei porque […] tive uma vida muito dura e depois comecei a namorar uma menina, conheci o irmão dela que usava droga, daí comecei a usar com ele e entrei para o mundo do crime. Eu era da maior quadrilha de roubo de camionete do Paraná, você não ouviu falar no jornal? (Jovem 1, 17 anos).

Não sei, acho que a curiosidade e a influência errada de amigos (Jovem 5, 17 anos).

Os familiares destes dois jovens atribuíram o uso das drogas às amizades, más companhias e ciúmes entre irmãos.

Eu acho que começou quando nasceu a neném, ele ficou com muito ciúme. Ele era o dodói da casa, ele não podia ficar nervoso por causa de um problema de coração que ele tinha […] depois ele namorava uma moça mais velha e tudo que ganhava gastava com presente para ela, meu marido fez ele terminar o namoro (Familiar 5, 39 anos, mãe).

Foi por causa das amizades e más companhias (Familiar 1, 50 anos, tia).

Chamou atenção o relato da mãe, que assumiu toda responsabilidade pelos erros do filho:

Eu acho que a culpa dele usar droga é minha, eu fui deixando […] permitindo que ele se afastasse de mim (chorou) (Familiar 4, 31 anos, mãe).

Três jovens afirmaram o envolvimento com as drogas devido ao relacionamento com amigos (Jovem 3, 6 e 11). Os familiares 6 e 11 afirmaram que o uso das drogas se deu por falta de carinho do pai e o Familiar 3 relacionou o uso de drogas às condições sócio-econômicas da família.

Finalmente, os jovens 8 e 10 atribuíram à iniciativa própria o uso de drogas de abuso, e o Jovem 9 à companhia do irmão. Os três familiares relataram que as más companhias contribuíram para o uso de droga pelo jovem. Porém, o Familiar 8 complementou com a falta de carinho da mãe, e o Familiar 10 também relacionou a pobreza familiar.

Os jovens que se envolvem com o crime, geralmente, são meninos pobres que não foram acolhidos na estrutura familiar, assim como na escola ou na comunidade. Quando portam uma arma de fogo fazem com que as pessoas se paralisem pelo medo e encontram, nestas atitudes, uma forma de conseguir prestígio, terem aceitação social e dinheiro(14-15).

Alguns jovens inconformados com as desigualdades sociais, excluídos socialmente, manifestam sua agressividade ao fazerem parte de quadrilhas de tráfico e droga, pois é considerada uma forma fácil e rápida de se ganhar dinheiro(15).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora as respostas dos jovens em grande parte não se assemelhem às obtidas de seus responsáveis, podem expressar informações próximas à sua realidade e vivências.

Quanto ao papel da família na iniciação ao uso de drogas pelo jovem, é relevante destacar seis aspectos:

• A mãe foi a cuidadora mais citada pelo jovem, porém o cuidado ampliado foi relatado por cinco famílias, tendo a avó o papel de responsável pelas crianças abandonadas;

• Em cinco famílias a mãe não possuía uma união estabilizada e todos os jovens, cujas mães tinham se casado novamente ou já haviam se relacionado com vários parceiros, afirmaram não ter um bom relacionamento com seus padrastos;

• No que se refere ao relacionamento do jovem com o cuidador na infância, grande parte das famílias o relataram como bom, no entanto, observou – se nos relatos dos jovens mágoas e ressentimentos;

• A violência intrafamiliar esteve presente em sete famílias, embora fosse entendida pelos jovens apenas como agressão física intensa e que deixava tristes lembranças;

• Apenas quatro famílias solicitaram auxílio ao Conselho Tutelar para institucionalização do jovem, os demais foram encaminhados ao Cervin por ordem Judicial, após atos infracionais;

• Observou-se que o uso de drogas por pais, tios e primos assume uma cultura familiar implícita de uso de drogas.

Considerando o papel da família para a resistência dos jovens às adversidades, concluiu-se, então, que o grupo estudado apresentava vários eventos desfavoráveis no ambiente familiar, que podem ter atuado como fator indutor ao uso de drogas de abuso: perda de membro familiar na infância por falecimento; doenças na família, principalmente uso de álcool e drogas; brigas e separação dos pais; violência intrafamiliar física e psicológica; violência social e convivência do jovem com o crime.

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência:
Catia Campaner Ferrari Bernardy
Rua Nicolaus Kempf 182,
CEP 86600-000 – Rolândia, PR, Brasil

Recebido: 29/04/2008
Aprovado: 05/02/2009

* Extraido da dissertação “Relações familiares e institucionalização de jovens usuários de drogas de abuso”, Progama de Pós-Graduação em Emfermagem, Universidade Estadual de Maringá, 2007.


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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