Marijuana Craving Questionnaire (MCQ-SF/Versão Brasil): validação semântica
Rosemeri Siqueira PedrosoI; Maria da Graça Tanori de CastroII; Renata Brasil AraujoIII
INTRODUÇÃO
O conceito mais utilizado de craving refere-se a um intenso desejo para consumir uma determinada substância, sendo mais amplamente definido como o reflexo de um estado de motivação orientado para o consumo de drogas, integrando a ideia de desejo com a da utilização da substância1-4.
A etiologia do craving pode ser explicada por intermédio dos modelos: Comportamental, Cognitivo ou Psicossocial e Neurobiológico, sendo que a opção por um desses influencia sua avaliação e manejo. A multidimensionalidade do craving parece justificar a necessidade de que seja utilizado um Modelo Biopsicossocial que integre os diversos modelos no tratamento de dependentes químicos4.
Jornal Brasileiro de Psiquiatria – version ISSN 0047-2085 – J. bras. psiquiatr. vol.58 no.4 – Rio de Janeiro 2009 doi: 10.1590/S0047-20852009000400001
Marijuana Craving Questionnaire (MCQ-SF/Brazil Version): semantic validation
Rosemeri Siqueira PedrosoI; Maria da Graça Tanori de CastroII; Renata Brasil AraujoIII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
II Instituto Abuchaim, Porto Alegre
III Hospital Psiquiátrico São Pedro, Porto Alegre
RESUMO
OBJETIVO: O objetivo deste estudo foi realizar tradução e adaptação transcultural do Marijuana Craving Questionnaire (MCQ-SF)10, que avalia o craving por maconha em uma amostra brasileira.
MÉTODO: O MCQ-SF foi traduzido do inglês para o português, aplicado em 10 sujeitos, submetido ao brainstorming num grupo de três indivíduos para reprodução individual e verbal, item a item. Realizou-se o back-translation, uma versão para o idioma de origem, a partir da primeira tradução e do brainstorming. Logo após, traduziu-se novamente para o português. Um comitê de juízes especialistas analisou todas as traduções.
RESULTADOS: Após as considerações do comitê e um estudo-piloto com 30 sujeitos, a versão final do MCQ-SF/Versão Brasil foi construída.
CONCLUSÃO: Os resultados demonstraram uma equivalência semântica satisfatória entre as versões. O MCQ-SF/Versão Brasil pode ser útil para avaliar o craving pela maconha nos dependentes dessa substância.
Palavras-chave: Equivalência semântica, craving, maconha, questionário.
ABSTRACT
OBJECTIVE: The aim of this study was to translate and adapt culturally the Marijuana Craving Questionnaire (MCQ-SF)10 which evaluates the craving for marijuana in a Brazilian sample.
METHOD: The Marijuana Craving Questionnaire (MCQ-SF) was translated from English to Portuguese, administered to 10 subjects, submitted to a brainstorming in a group of three people for individual and verbal reproduction, item by item. Back-translation was executed, a translation for the original language, based on first translation and from brainstorming. Soon after, it was translated again into Portuguese. A committee of specialists analyzed all translations.
RESULTS: After the committee considerations and a pilot study with 30 subjects, the final version of MCQ-SF/Versão Brasil was built.
CONCLUSION: The results showed a satisfactory semantic equivalence between versions. The MCQ/Versão Brasil can be useful to evaluate the craving for marijuana on the dependents of this substance.
Keywords: Semantic validation, craving, marijuana, questionnaire.
INTRODUÇÃO
O conceito mais utilizado de craving refere-se a um intenso desejo para consumir uma determinada substância, sendo mais amplamente definido como o reflexo de um estado de motivação orientado para o consumo de drogas, integrando a ideia de desejo com a da utilização da substância1-4.
A etiologia do craving pode ser explicada por intermédio dos modelos: Comportamental, Cognitivo ou Psicossocial e Neurobiológico, sendo que a opção por um desses influencia sua avaliação e manejo. A multidimensionalidade do craving parece justificar a necessidade de que seja utilizado um Modelo Biopsicossocial que integre os diversos modelos no tratamento de dependentes químicos4.
As expectativas de resultados quanto aos efeitos, à intenção de consumir e ao craving pela droga, para alguns autores, não são fatores que podem ser inseridos em uma mesma definição2. Por serem conceitualmente diferentes, as expectativas e a intenção seriam desencadeantes do craving. Outros autores, no entanto, acreditam que fazem parte do craving o desejo, a antecipação do efeito positivo, o alívio dos sintomas de abstinência e do afeto negativo e a intenção de usar a droga4,5 .
Ao analisar essa diversidade conceitual, não há como deixar de pensar que o desejo só pode ser entendido em sua relação com o objeto desejado e com as consequências dessa realização. Esses fatores parecem se misturar quando se avalia o craving de um dependente químico por uma determinada substância4.
Assim, há diferenças nas características do craving pelas diferentes substâncias psicoativas, o que é importante de ser avaliado. Em estudo conduzido por McRae et al.6, por exemplo, os sujeitos dependentes de maconha pesquisados referiram craving mais intenso do que os dependentes de cocaína referiram para essa substância. Em outra pesquisa, o craving concorreu para a recaída em mais de 50% dos participantes dependentes de maconha7.
É fundamental destacar que não existe uma única forma de mensurar o craving que sirva para todas as situações, entretanto são necessárias novas pesquisas para que suas medidas de avaliação possam oferecer subsídios para a melhor definição desse constructo, bem como dos fatores a este relacionados3,4,8.
Marijuana Craving Questionnaire (MCQ-SF)
Na falta de um instrumento psicometricamente válido para medir o craving de maconha, Heishman et al.9 criaram o MCQ, uma escala multidimensional, cujos itens foram extraídos dos conceitos teóricos do craving. Trata-se de um questionário de 47 itens, que foi aplicado em uma amostra de 217 sujeitos fumantes de maconha que não estavam tentando parar ou reduzir seu uso. Os participantes tinham uma média de 31,4 anos de idade; 79% eram homens, 50% eram afro-americanos, 44% eram caucasianos e 80% tinham terminado o ensino médio.
A análise fatorial exploratória indicou 17 itens, com consistências internas satisfatórias e estáveis, evidenciando correlações positivas e significativas com a história do uso de maconha e com os itens de medida do craving. Os itens foram distribuídos em quatro subescalas: 1) Compulsividade: que se refere à falta do controle sobre o uso da substância e seu consequente uso compulsivo, apesar das consequências negativas a si mesmo e à sociedade; 2) Emocionalidade: relaciona-se à antecipação dos sintomas psicológicos da retirada da droga ou do afeto negativo: ansiedade, tensão e agitação; 3) Expectativas: diz respeito à antecipação de resultados positivos que o uso de maconha trará; 4) Intencionalidade: que aborda o quanto o indivíduo pretende de fato usar maconha.
Nos sujeitos pesquisados por Heishman et al.9, 57% tinham entre 1 e 4 episódios de craving por dia (sendo a média 2), 18% tinham mais do que 5 episódios e 22% não apresentavam craving. A maior parte dos sujeitos (82%) tinha craving com duração inferior a 30 minutos e apenas 18% apresentavam episódios com duração maior do que esta.
A partir dos 17 itens do MCQ desenvolvido por Heishman et al.9, foi criado o MCQ-SF, com 12 itens10. O MCQ-SF foi administrado em uma amostra independente de fumadores da maconha que não estavam interessados em reduzir ou parar o uso da droga. Foram 490 participantes, da comunidade de Baltimore, recrutados por meio da mídia. O MCQ-SF10 demonstrou ser confiável psicometricamente, da mesma forma que o MCQ9.
O objetivo deste estudo é realizar tradução e adaptação transcultural do MCQ-SF10 para uma amostra brasileira.
MÉTODO
O processo de validação semântica ocorreu nos moldes de estudos anteriores como os de Pedroso et al.11, Araujo et al.3, Araujo et al.4 e Mattos et al.12, seguindo as seguintes etapas:
Tradução do instrumento: primeiramente o Marijuana Craving Questionnaire-SF10 foi traduzido da língua inglesa para a língua portuguesa. O trabalho foi realizado por uma profissional, graduada em Letras, habilitada em língua inglesa, conhecedora do objetivo da tradução.
Aplicação do instrumento traduzido: na segunda etapa do processo de validação, o MCQ-SF foi aplicado em 10 sujeitos, com o perfil da amostra pesquisada, a fim de verificar dúvidas, expressões confusas ou ambíguas.
Brainstorming: o terceiro passo da validação foi a submissão do MCQ-SF já traduzido a três profissionais com experiência no tratamento da dependência química (duas psicólogas e 1 psiquiatra). Apresentou-se o instrumento, item a item, para que cada um dos membros do grupo o reproduzisse verbalmente. Os 12 itens foram reproduzidos sem dificuldade e todos integrantes do comitê consideraram o significado dos itens claro e facilmente compreensível.
Back-translation: o instrumento foi vertido para o idioma de origem. O trabalho foi realizado por um nativo de língua inglesa, com fluência em língua portuguesa e desconhecedor do objetivo da tradução.
Tradução do instrumento: a partir back-translation, o MCQ-SF foi traduzido novamente para a língua portuguesa. O trabalho foi realizado por uma psicóloga brasileira, com fluência na língua inglesa, conhecedora do objetivo da tradução.
Comitê de juízes especialistas: todo o processo de tradução e back-translation foi encaminhado para um comitê de três juízes especialistas, todos psiquiatras com experiência no tema pesquisado e que ainda não tinham feito parte do processo de validação. O trabalho dos juízes consistiu em detectar possíveis divergências nas traduções, cabendo-lhes comparar os resultados entre si, verificando se os itens da escala referiam-se ou não ao tema que mensuravam. A partir dos pareceres desse comitê, produziu-se a versão final do instrumento.
Versão final do instrumento: a versão final do MCQ-SF/Versão Brasil foi aplicada em um estudo-piloto, em uma amostra de 30 participantes, do sexo masculino e feminino, entre 18 e 60 anos de idade, com a escolaridade mínima da quinta série do ensino fundamental, dependentes de maconha e hospitalizados para tratamento de dependência química (maconha e outras substâncias psicoativas). Nesta etapa, buscava-se avaliar se, do ponto de vista dos usuários dessa substância, o MCQ-SF/Versão Brasil era adequado e compreensível.
ASPECTOS ÉTICOS
Primeiramente, foi solicitada aos autores do MCQ-SF10 autorização para sua tradução e validação no Brasil. Após essa autorização, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em pesquisa do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP). A partir de então, foi iniciada a parte da adaptação transcultural, que incluía aplicação do instrumento em pacientes hospitalizados para tratamento de dependência química. Todos os sujeitos que participaram da amostra assinaram anteriormente um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
Os resultados obtidos em análise interjuízes, avaliações de tradução e back-translation indicaram que não houve dificuldade de tradução nos itens do MCQ-SF. Apenas um ajuste foi feito no sentido de melhor adequar a frase traduzida à língua portuguesa coloquial.
Optou-se pelo enunciado da primeira tradução, a da versão original, já que houve consenso dos três juízes com relação a esse aspecto (Tabela 1).
Manteve-se o nome original da escala em inglês, MCQ-SF, acrescentando-se a expressão “Versão Brasil” no final, para facilitar a busca em bancos de dados internacionais.
Dos 12 itens, apenas um foi modificado, a partir da primeira tradução e do back-translation. O item modificado foi o 12, o qual aparecia na primeira tradução, a partir do original, “Fumar maconha me faria contente” e, na back-translation, “Fumar maconha me deixa feliz”. Após a avaliação dos juízes especialistas, a tradução final ficou “Fumar maconha me deixaria satisfeito”.
Tanto na aplicação da primeira versão do instrumento quanto na da versão final, todos os participantes compreenderam o que estava sendo proposto nas questões e responderam ao questionário entre 2 e 4 minutos.
A versão final do MCQ-SF/Versão Brasil pode ser observada no anexo 1.
DISCUSSÃO
Embora poucos estudos tenham sido realizados abordando o craving por maconha, sabe-se que esse é um fator determinante para a recaída no uso dessa substância7.
Budney et al.13 verificaram que 44% dos dependentes de maconha referiam craving severo por essa substância, podendo este impactar negativamente o curso clínico e o sucesso do tratamento dessa população, o que indica a relevância de se ter instrumentos validados para mensurar tal constructo.
Verificou-se que, nas etapas de tradução da versão original do MCQ-SF para o português, não foram observadas dificuldades para sua aplicação e entendimento. A equivalência conceitual foi obtida facilmente nas duas versões14,15.
O consenso entre os participantes do brainstorming e posteriormente por meio da análise dos juízes especialistas demonstrou a equivalência conceitual15, sendo, com base nesses resultados, construída a versão final do Marijuana Craving Questionnaire (MCQ-SF/Versão Brasil).
No momento, a validação psicométrica está sendo realizada e, nesta etapa, a amostra deverá atingir o número de 120 participantes.
Sem uma metodologia adequada para o processo de tradução, adaptação cultural e equivalência semântica de um instrumento de pesquisa, podem ocorrer falhas técnicas, no sentido de a tradução ser tendenciosa ou diferente da versão original. Durante a adaptação cultural de um instrumento, os hábitos e as atividades de uma população devem ser levados em conta para que este se torne válido e útil em aplicações por profissionais da área clínica.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos aos doutores: Stephen J. Heishman, Rebecca J. Evans, Edward G. Singleton, Kenneth H. Levin, Marc L. Copersino e David A. Gorelick, por nos permitir traduzir, validar semanticamente e publicar o Marijuana Craving Questionnaire (MCQ-SF)10. Ao referir a versão brasileira do MCQ-SF, solicitamos que sejam citados os artigos Heishman et al.9 e Heismann et al.10 encontrados nas referências deste artigo.
REFERÊNCIAS
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15. Pasquali L. Princípios de elaboração de escalas psicológicas. Rev Psiquiatr Clín 1998;25:206-13.
Endereço para correspondência:
Rosemeri Siqueira Pedroso
Av. Azenha, 165/305, Bairro Azenha – 90160-000 – Porto Alegre, RS
E-mail: rosemeripedroso@yahoo.com.br
Recebido em 2/10/2009
Aprovado em 27/10/2009