23 de dezembro de 2024

El Alcohol: un producto de consumo no ordinario

9 de novembro de 201117min30
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a15img01Marcos Romano; Ronaldo Laranjeira
Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas, Universidade Federal de São Paulo

http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462004000400017

Há 30 anos, a Organização Mundial de Saúde (OMS) vem coordenando um projeto que visa a analisar as evidências disponíveis sobre as políticas públicas em relação ao álcool. As primeiras conclusões foram reunidas em um volume lançado ainda em 1975, Alcohol control policies in public health perspectives. Sobre ele, assinalou Griffith Edwards que “poucos livros tiveram tanta influência no pensamento e na elaboração de políticas públicas nessa área”. O sucessor deste primeiro trabalho foi “Alcohol Policy and the Public Good” (Edwards et al, 1994), que estabeleceu as bases científicas para a elaboração de políticas públicas para o álcool de uma forma abrangente e facilmente acessível.

Fruto de um trabalho de 17 dos mais renomados especialistas na área, o livro revela a insuficiência da abordagem médica do alcoolismo, evidenciando que o consumo de álcool em uma comunidade afeta a toda a comunidade e não apenas à pequena minoria de bebedores pesados. A partir dessas evidências, os autores assinalam que o consumo de álcool deve ser abordado a partir de uma perspectiva da saúde pública, com políticas direcionadas para toda a população, como única forma de mitigar o elevado custo social do consumo de álcool.

Da perspectiva da saúde pública, o consumo de álcool desempenha um papel significativo na morbidade e na mortalidade em uma escala global. Nos últimos 50 anos, houve um progresso considerável no conhecimento da relação entre álcool e saúde, proporcionando uma base científica para o debate público e a elaboração de políticas públicas. No entanto, a maior parte dessas evidências científicas encontra-se em publicações acadêmicas que não atingem os responsáveis pela elaboração de tais políticas.

A fim de preencher essa lacuna, o maior corpo de especialistas na área já reunido lançou, em 2003, dando prosseguimento à colaboração com a OMS, o livro Alcohol: no ordinary commodity. Basicamente, o livro é um tratado científico sobre política do álcool, e é fruto de uma análise objetiva: o que é política do álcool, por que ela é necessária, quais são as intervenções efetivas e como a evidência científica pode suportar a elaboração de políticas.

Seus autores o escreveram por três razões:

1) Pesquisas epidemiológicas revelam mudanças na forma como o álcool afeta a saúde e o bem-estar social da população em diferentes regiões do mundo. A população de países em desenvolvimento é atingida de forma crescente e peculiar por problemas relacionados ao consumo do álcool.

2) Governos locais e nacionais têm se responsabilizado de forma crescente por elaborar políticas de saúde apropriadas para combater esses problemas, incluindo programas de prevenção e tratamento.

3) Existem atualmente evidências científicas sólidas que fundamentam tais políticas, oferecendo uma oportunidade única aos formuladores de políticas públicas.

Além de uma atualização da epidemiologia dos problemas relacionados ao consumo de álcool e dos avanços obtidos na pesquisa de políticas de prevenção durante a última década, o livro oferece uma nova perspectiva ao desenvolvimento de políticas efetivas para o álcool, a partir de aspectos econômicos e comerciais do consumo de álcool.

A seção I do livro é a Introdução, que busca definir o conceito de política do álcool. De um modo geral, política do álcool é qualquer esforço deliberado ou decisão oficial da parte de governos ou de grupos não governamentais visando a minimizar ou prevenir conseqüências do consumo de álcool. Os autores defendem que políticas públicas para o álcool são apenas aquelas provenientes de legisladores legítimos, e nunca as provenientes da indústria ou de grupos a ela relacionados; oferecem, ainda, uma definição mais abrangente de políticas para o álcool do que seus antecessores: assim, quando políticas públicas abordam a relação entre álcool, saúde e bem-estar social, são consideradas políticas para o álcool. Por exemplo, leis destinadas a evitar que as pessoas dirijam sob efeito do álcool, prevenindo acidentes relacionados ao consumo de álcool, são consideradas políticas para o álcool.

A seção II compõe-se de três capítulos e fundamenta-se na epidemiologia para, no capítulo 2, demonstrar que o álcool não é um produto qualquer. A despeito de seus significados simbólicos e culturais, o álcool é um produto capaz de causar danos através de três mecanismos distintos: toxicidade direta e indireta sobre diversos órgãos e sistemas corporais, intoxicação aguda e dependência. Estudos de prevalência revelam que formas menos graves de dependência são amplamente distribuídas na população geral e estão associadas a um nível crescente de problemas; no entanto, a maior causa de problemas relacionados ao álcool na população geral é, na verdade, a intoxicação pelo álcool; e uma conclusão interessante fornecida pelos estudos epidemiológicos é a seguinte: beber ocasionalmente, mas a ponto de ficar intoxicado, é muito comum; e a intoxicação, mesmo quando ocorre com pouca freqüência, pode provocar danos sociais e físicos consideráveis. Na verdade, o risco de problemas decorrentes de um único episódio de intoxicação é mais alto entre aqueles que o fazem infreqüentemente do que entre aqueles que bebem com maior freqüência.

No capítulo 3 são apresentados dados sobre como as variações nos padrões de consumo afetam as taxas de problemas relacionados ao consumo de álcool e implicam na escolha das medidas políticas. Dois aspectos do consumo de álcool de particular importância para comparações entre populações e através do tempo: primeiro, o consumo total de álcool em uma população é um importante indicador do número de indivíduos que bebem pesadamente; segundo, a relação entre consumo total e problemas é modificada tanto pelo número de pessoas que bebem em uma população quanto pela forma como o álcool é consumido.

O capítulo 4 apresenta dados a respeito do custo global do álcool. Segundo a OMS, o álcool foi o responsável por 4% dos casos de morte e invalidez no mundo no ano de 2000, ocupando o quinto lugar em uma lista dos 26 maiores fatores de risco. É importante ressaltar que, nos países em desenvolvimento, o álcool é o terceiro mais importante fator de risco, sendo o responsável por 9,2% de todos os casos de morte e invalidez.

A seção III detalha as estratégias e intervenções para a redução dos problemas relacionados ao consumo de álcool. O capítulo de abertura (cap. 5) dessa seção fornece uma visão geral das estratégias disponíveis, dividindo-as entre as de alocação – que direciona recursos para determinadas prioridades, relativas à prevenção ou a tratamento – e as de regulação, que visam a influenciar comportamentos e decisões dos indivíduos através de ações mais diretas.

O capítulo 6 define estratégias direcionadas ao preço e taxação das bebidas alcoólicas. Mostra que existe uma relação inversamente proporcional entre preço e consumo: quanto maior o preço das bebidas, menos se bebe e, quanto menor o preço, maior o consumo de bebidas; bebedores pesados e adolescentes tendem a ser ainda mais sensíveis às variações de preço. O preço das bebidas vem caindo ao longo dos últimos 50 anos em muitos países, meramente por uma dificuldade dos governos em reajustar as taxas conforme a inflação e por uma tendência à liberalização de muitas medidas de controle anteriormente existentes. Portanto, a taxação sobre as bebidas alcoólicas é vista como uma forma muito efetiva e de baixíssimo custo para reduzir problemas relacionados ao consumo de álcool e, ao mesmo tempo, aumentar a captação de recursos.

O capítulo 7 trata de medidas destinadas a regular a disponibilidade física do álcool, no que se refere à sua acessibilidade. Pesquisas demonstram que determinadas restrições – como nos dias e horas de venda de bebidas, no número de pontos de venda de álcool (através de leis de zoneamento urbano, por exemplo) – são eficazes para reduzir tanto o consumo quanto os problemas relacionados ao álcool. Um bom exemplo é a instituição de uma idade mínima para a compra de bebidas, uma medida de custo insignificante e de grande impacto. Em geral, as estratégias apresentadas custam muito pouco comparadas aos custos dos problemas relacionados ao consumo de álcool, principalmente do beber pesado. Este capítulo também revela que muitas estratégias de forte apoio popular podem ser não apenas ineficazes, como também podem agravar problemas; um exemplo é a promoção de atividades e eventos “sem álcool”: os poucos programas que tiveram resultados positivos haviam aplicado também pelo menos uma outra estratégia de prevenção paralelamente.

O capítulo 8 aborda o uso de álcool em seu contexto social, cultural e comunitário, e mostra que o consumo pesado pode ser modificado e problemas reduzidos através de estratégias que alteram esse contexto. Sua efetividade não depende do apoio ou adesão dos indivíduos que bebem, embora tal apoio possa aumentar o efeito de tais medidas. Prevenção direcionada aos ambientes de alto risco do beber constitui uma alternativa ou complemento a medidas de prevenção de foco mais amplo, como aumento do preço e abordagens individuais, como o tratamento.

O capítulo 9 detalha estratégias direcionadas a evitar o “beber e dirigir”. Acidentes devidos a dirigir sob o efeito do álcool constituem um sério problema em qualquer país que faça uso substancial de veículos automotores. Existem evidências de que o seguinte conjunto de medidas reduz acidentes relacionados ao consumo de álcool: estabelecer um nível baixo da CAS (concentração alcoólica no sangue) tolerada para os motoristas e suscitar o senso de certeza e de rapidez da punição (e a melhor punição tende a ser a suspensão da carteira de habilitação) através de checagens aleatórias sistemáticas.

O capítulo 10 aborda a questão da publicidade das bebidas alcoólicas e de como estratégias que restringem o marketing, hoje global e feito por uma indústria extremamente poderosa, são eficazes para a redução do consumo e de problemas relacionados. O capítulo 11 delineia as estratégias educacionais e mostra que, apesar de muito populares, são muito pouco efetivas em reduzir consumo, além de terem um custo muito alto. O capítulo 12 mostra as estratégias de tratamento mais efetivas disponíveis e revela que abordagens como Intervenção Breve podem ser muito eficazes e têm baixo custo.

A seção IV compõe-se de três capítulos e discorre sobre o processo de construção da política do álcool. Detalha quais são os atores e o papel de cada um neste jogo político: os interesses comerciais, os meios de comunicação de massa, organizações não-governamentais, as campanhas públicas, os governos e as comunidades; situa a política do álcool no seu contexto internacional e nomeia as “10 mais” opções políticas. Os autores lembram que tais políticas têm seu efeito potencializado quando realizadas em conjunto e que podem ser aplicadas tanto em nível nacional quanto local. Nunca antes houve tanta evidência científica para tantas estratégias políticas destinadas a reduzir o impacto do consumo de álcool; no entanto, ainda há um vácuo nas diversas instâncias políticas preenchido por estratégias e intervenções ineficazes. Se este livro cumprir seu papel de informar corretamente os agentes políticos envolvidos na elaboração de políticas para o álcool, a realidade pode começar a mudar.

Esse livro é uma obra fundamental para todos os envolvidos em organizar políticas públicas em relação ao álcool. Deveria ser lido, discutido, criticado e analisado por todos os profissionais e alunos da área de dependência química e saúde pública.

elalcohol

acesse o conteúdo em espanhol: clique aqui


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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