24 de novembro de 2024

Lei antidrogas não é suficiente

9 de março de 200918min26

Apesar de trazer avanços, lei antidrogas não é suficiente, dizem especialistas
08/03/2009 – 18:52 – Juliana Kirihata, repórter do Último Segundo

ImprimirEnviarCorrigirFale Conosco“Acho que no Brasil ainda não dá pra liberar a maconha. O tráfico é uma coisa muito ruim, mas a legalização pode virar jogo político. Só quando a cabeça da população mudar isso pode acontecer”. A afirmação é de Daiane*, estudante de Relações Públicas da Universidade de São Paulo. A jovem, que gosta de sair para festas e baladas, diz também que costuma usar a droga aos finais de semana.

A aparente contradição presente na vida de Daiane retrata bem a situação da maconha no Brasil. Enquanto recente relatório da ONU aponta que a droga estaria “mais potente”, retoma-se a discussão da legalização na Comissão Latino–Americana sobre Drogas e Democracia, com a presença, inclusive, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Se a Lei Antidrogas nº 11.343, que desde outubro de 2006 prevê penas mais leves para o usuário, tornou, na opinião de especialistas, mais fácil a busca dos dependentes pelo tratamento por outro lado, o consumo da droga continua aumentando nos últimos anos. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), existem quase 160 milhões de usuários de Cannabis no mundo.

A maconha, que já suscitou debates calorosos ao longo das décadas, continua levantando opiniões e fatos aparentemente opostos, mas que mostram a complexidade de uma questão que, se não tem resposta definitiva, também não parece ter fim próximo. A seguir, alguns pontos dessa discussão.

Começo

Daiane, de 21 anos, afirma que costumava odiar os chamados “baseados”. “Sempre tive amigos que fumam maconha, e eu na realidade odiava, achava um absurdo as pessoas fumarem”. A aversão, porém, perdeu para a curiosidade. “Namorei um cara que fumava todo dia. Um dia fiquei com vontade e experimentei”, lembra a estudante.

“A maioria começa pela curiosidade mesmo”, confirma a psicóloga Ana Sant’Anna, que trabalha na recuperação de dependentes químicos no Hospital Vera Cruz, em São Paulo. “Nem todo mundo que experimenta vai continuar a usar. Mas há esse perigo de virar um dependente”, diz. É estimado que cerca de 10% das pessoas que usam frequentemente maconha desenvolva algum grau de dependência.

Segundo Marcelo Niel, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, mesmo quando o jovem passa por esse processo de “experimentação”, os pais devem se calçar de informações para lidar de maneira correta com ele. “A maioria passa por um processo de experimentação sem maiores danos, mas muitos indivíduos descobrem que o filho está em contato com a droga e já interna, sendo que ele está numa fase anterior à dependência”, diz.

Para Daiane, que também já usou ecstasy e LSD em festas, a dependência não é considerada uma ameaça: “acho que quem vira um viciado é porque tem a cabeça muito fechada e fraca. Você não pode fumar todo dia e fazer a sua vida girar em torno disso”, acredita. Porém, a estudante admite que já teve medo dos efeitos da droga. “Tinha medo justamente de precisar fumar todo dia e de ter as minhas capacidades cognitivas afetadas”.

De acordo com o professor-doutor do Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica da FMRP da Universidade de São Paulo, José Alexandre Crippa, a estudante está assumindo mais riscos do que imagina. “A maconha aumenta a chance de quadros de psicose, ansiedade e depressão em pessoas vulneráveis”, afirma. Mesmo para quem usa a droga pela primeira vez, segundo ele, há perigo: “a pessoa que usa pela primeira vez tem mais chances de ter crise de pânico, além de problemas psicóticos curtos e breves”.

Caminho incerto

Do começo com a maconha, aos 10 anos, Michel foi para o crack. “Por causa da droga, tomei cinco tiros nas costas”, conta, hoje, com 30. Com 18 anos, o interno da Unidade de Tratamento de Álcool e Outras Drogas do Hospital Vera Cruz, em São Paulo, perdeu o movimento das pernas após ser baleado.

A história de perdas se repete quando outros três internos da unidade lembram de suas trajetórias com as drogas. Todos afirmam que o primeiro contato foi com a maconha. Fábio, de 29 anos, resolveu experimentar um baseado com 21 anos, depois de namorar uma usuária. Em seis meses, consumia “todo tipo de droga”. Um ano após a primeira experiência, diz que “não conseguia mais parar”.

Para o estudante de artes plásticas, a maconha é uma armadilha para quem está em recuperação. “Se eu fumo maconha hoje, amanhã vou fumar um mesclado (maconha misturada com crack), vou ter uma recaída de comportamento. É pura ilusão”, acredita.

Foi assim que Luis, de 28 anos, outro paciente do hospital, voltou a se internar. No Ano-Novo, na praia, com os amigos, o professor de futebol pensou que “um baseado e uma cerveja” iriam bastar. Não foi o que aconteceu. Segundo ele, que usou drogas por 14 anos, “o pouco é muito para o dependente”. Depois de passar meses em clínicas e pensando estar se afastando do problema, os primeiros dias de 2009 foram de recaída no álcool, na maconha e na cocaína.

Apesar da difícil luta contra as drogas, os internos demonstram otimismo. Segundo eles, o acompanhamento com psicólogos, médicos e terapeutas os ajuda a ter forças e fazer planos. “Vou ficar mais 15 dias aqui [na unidade de tratamento]. Tem que ter uma meta na vida”, diz o professor Luis.

Legislação/ Legalização

Segundo a psicóloga Ana Sant’Anna, que trabalha há dez anos com dependentes de drogas, pessoas como Fábio, Luis e Michel procuram mais pelo tratamento hoje do que antes da Lei nº 11.343, de 2006, que já não estabelece pena de prisão para o usuário, e, sim, “advertência sobre os efeitos das drogas prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.

“Isso desmitificou um pouco o tratamento. Após a lei, as pessoas podem falar mais abertamente e com mais tranquilidade que são usuárias”, acredita. O médico Marcelo Niel, um dos autores do livro “Dilemas modernos – Drogas, Famílias e Adolescentes” concorda com a opinião. “Acho que a lei trouxe benefícios nesse sentido, porque antes as pessoas ficavam com medo da repressão, de serem presas”.

O advogado criminalista Antonio Gonçalves admite que a lei antidrogas trouxe um abrandamento em relação ao usuário e um endurecimento em relação aos traficantes, mas critica a falta de especificidade dos termos em relação ao consumo pessoal. “O artigo 28 foi um dos que mais receberam críticas por ser abstrato. Só diz que o usuário foi penalizado. De repente isso pode incentivar uma banalização da conduta”, afirma.

Já o delegado do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) de São Paulo, Luiz Carlos Magno, acredita que o Brasil avançou legalmente no combate ao abuso de drogas. “Aquele modelo repressor não ajudou. Hoje nós nos aproximamos do modelo europeu, em que a pessoa não é tratada como um criminoso. A droga é apreendida, mas a pessoa tem chance de se ressocializar”.

Para o professor de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica, Pedro Serrano, a lei trouxe um avanço, mas ainda não é suficiente. “Pelo menos o usuário não vai para cadeia. Mas, de qualquer forma, ainda se mantém a política de criminalização do uso das drogas, o que eu acho inconstitucional. Fere o direito de liberdade, estabelecido na nossa Constituição”, diz.

Segundo Serrano, o uso de drogas é uma atitude que prejudica somente o usuário, e não os outros. O professor ressalta, porém, que sua posição é não é a favor das drogas, e, sim, da liberdade de escolha. “Não se deve estimular o uso de drogas de jeito nenhum. As pessoas têm que ter direito de saber que isso faz mal, mas o exercício da decisão é livre, o Estado não pode interferir nisso”, explica.

De acordo com o secretário nacional de políticas sobre drogas, Paulo Roberto Uchôa, a questão da descriminalização não foi levada ao Congresso “no momento oportuno”. “Fizemos seis fóruns regionais, nas cinco regiões do País, para ouvir a sociedade. E durante todo esse ano, nenhuma vez, nenhuma pessoa física, nem jurídica, chegou até nós para contribuir com uma sugestão para a descriminalização. Havia uma oportunidade, mas ninguém aproveitou”, disse.

O delegado Magno, no entanto, acredita que o País ainda não tem chances de legalizar a maconha por enquanto. Segundo ele, a venda legal da maconha, como acontece em alguns bares da Holanda, por exemplo, não seria viável hoje no Brasil “muito distante em termos sociais e políticos”.

Na Holanda, o consumo de drogas leves para uso próprio (até 30 gramas) é considerado apenas uma infração. A venda de drogas ‘leves’ nos chamados ‘coffe-shops’, sob condições estritas, também é tolerada. Já na China, a política é de ‘tolerância zero’ em relação às drogas. Os traficantes são condenados à morte e os usuários são obrigados a seguir um programa de reabilitação. Nos Estados Unidos, alguns Estados permitem o uso da maconha somente para fins médicos.

“Hoje em dia o mundo já está convencido que é preciso equilibrar as ações relacionadas à repressão da droga e as ações relacionadas ao dependente”, afirma o secretário de políticas sobre drogas.

No Congresso brasileiro, a questão avança a passos lentos. Parado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, um projeto de lei do senador Gerson Camata (PMDB-ES) determina aumento de pena dos crimes relacionados ao tráfico de drogas, quando deles resulta homicídio, em um terço da pena imposta.

Outra proposta, esta do senador Magno Malta (PR-ES), pretende instituir que as redes de serviços de saúde da União, dos Estados e dos municípios desenvolvam programas de atenção ao usuário e ao dependente de drogas.

Para o psiquiatra Marcelo Niel, o aumento da rede de acesso a tratamento é realmente uma das formas de combate ao abuso. “Em São Paulo tem um certo privilégio em relação a isso, mas nas regiões mais distantes é mais difícil encontrar tratamento”. O médico ressalta que outra medida imprescindível é o fornecimento cada vez maior de informação. “É preciso investir mais na parte de prevenção nas escolas”.

Efeitos

Além de Niel, um recente relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) aponta a necessidade de políticas públicas de prevenção. Embora o País não apareça como produtor de cocaína ou heroína, acabou se tornando rota de passagem para traficantes rumo aos Estados Unidos e à Europa, e se transformou em grande consumidor.

A América do Sul, segundo o relatório, é responsável por 25% da produção mundial de maconha, sendo o Paraguai o maior produtor da droga, com 5,9 mil toneladas, do total de 10 mil toneladas plantadas no continente. Em 2007, as maiores apreensões de maconha foram feitas no Brasil, com 200 toneladas recolhidas.

A ONU também alertou que a maconha estaria “mais potente”. Segundo o delegado Luiz Carlos Magno, as formas de maconha que causam mais efeito são mais caras e não representam o consumo em geral, mas oferecem mais risco ao usuário. A variação da planta da maconha, denominada “skank”, por exemplo, é produzida em laboratório, cresce mais rapidamente e pode ser cultivada em estufas (mais escondida da fiscalização). Sua principal característica é o fato de conter uma quantidade até sete vezes maior de tetrahidrocannabinol (THC, a substância ativa) do que a maconha comum.

Apesar da existência desses tipos de droga com efeito mais forte, Magno diz que a maior parte da maconha consumida hoje é de “pior qualidade”. Para obter mais lucro, os traficantes misturam à erva outras substâncias não-entorpecentes como esterco, capim e pó de café. “Além disso, os traficantes estão jogando cada vez mais drogas no mercado, o que causa o barateamento do preço”, diz.

O uso da maconha pode causar um aumento na frequência cardíaca e da pressão sanguínea. Os vasos sanguíneos da córnea dilatam-se, deixando os olhos vermelhos. Usuários também relatam frequentemente aumento no apetite, boca seca, vertigens ocasionais e leve náusea.

Por causa da mistura com substâncias variadas, os efeitos da droga podem não ser tão duradouros e fortes como os da maconha “pura”, mas os riscos continuam, segundo os médicos.

Outro lado, segundo o delegado, é o dos usuários que, por causa da qualidade ruim da maconha, misturam a droga com cocaína, crack e outras drogas. “O crack é um estimulante, a maconha é um “desorganizador” do sistema nervoso central. O crack e a cocaína, de forma geral, podem induzir à parada cardíaca, causam uma dependência muito grande e rápida. Misturar as drogas é mais perigoso do que usar a maconha sozinha porque uma substância pode interagir com a outra”, alerta o médico José Crippa.


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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