24 de novembro de 2024

UM MANIFESTO SOBRE NOSSO ENSINO PÚBLICO

20 de dezembro de 202120min97
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Por Luís Marra

A verdade é esta, hoje, na região de Guaianases e de Cidade Tiradentes: a escola pública não ensina mais nada, nada. E digo nada, uma vez que este nada pressupõe, é claro, as raras exceções que validam as regras. É o nada relativo mas é o nada. Não há mais ensino. A escola pública é apenas um espaço reservado ao encontro de jovens, digo de adolescentes de ambos os sexos que lá comparecem para fazer uma série de atividades hoje amplamente liberadas. Não exagero, e tenho meus excelentes contatos, tenho meus informantes insiders que são sinceros, conhecedores, testemunhas, e que me revelam. Não exagero. Hoje, a função da escola pública na periferia nada tem a ver com o ensino. A escola mudou de função, aceitem isso, ou então vivam no mundo das lorotas e das fantasias. Ah, vão perguntar: mas existe aula, existe sala de aula, professor, etc e tal. Sim, existe no plano simbólico e fake. A realidade já se impõe com cínica naturalidade. O professor, que é mal pago e tantas vezes mal preparado, apenas se limita a uma rotina de escrever alguma matéria na lousa, e depois fica a observar o panorama irrequieto de uma bando de selvagens, ou fica a ler um livro, ou a olhar para o nada, ou a mexer no celular, esperando o tempo passar. Não existe mais aula, porque a aula é impossível de ser dada. Hoje, o aluno é rei e goza de todos os direitos e de nenhum dever, e está livre, uma vez que ele ou é uma “vítima do sistema”, ou ele “reproduz uma violência doméstica”, ou ele é vítima de um “racismo estrutural”, ou ele é apenas “o menor” sagrado e intocável. As regras existem no mundo fictício do papel, mas não mais existem na prática. O cinismo tomou conta da sala de aula e da escola. Ninguém aprende mais nada, afora aquelas raras exceções que validam a regra entre alunos na verdade autodidatas, esforçados, e raridades. Não adianta culpar a grade curricular, não adianta dizer que os livros didáticos devam ser melhorados, ou que os professores precisam conhecer melhor a didática do ensino. É inútil. Nada disso funciona mais. A realidade solapou tudo isso. Hoje em dia, e conforme minhas excelentes fontes de informação, os alunos mais descarados e populares fumam maconha numa boa na sala de aula, passam a mão na bunda das meninas na sala de aula, dão amassos, dão encoxadas, fazem bullyng contra os bobocas que não sabem se defender, zoam como querem, se enlambuzam de se divertir, e é tudo, enfim, extensão de parque de diversões. Sim, meus amigos e conhecidos, o assunto é sério, pesado, ultra realista. Hoje está assim e está ficando cada vez mais assim. O aluno é rei e intocável, e nele paira o privilégio enviesado e estranho de ser intocável por ser ele uma “vítima do sistema”, ou por ser ele um inocente menor que no fundo é bom e puro e apenas “reproduz uma violência doméstica” , ou que é vítima de um “racismo estrutural”, ou de qualquer outra bobagem ou invencionice. Mas o aluno é rei, e nas escolas de Guaianases e de Cidade Tiradentes, os alunos francamente marginais são muitos, muitos mesmo, dentre os que são ladrões, traficantes, dentre os que cometem delitos menores ou dentre os que roubam carros e motos e se exibem assim principalmente para as “minas” deslumbradas, e é assim também inclusive dentre aqueles mancomunados com o crime organizado cujos pais estão até ligados ao “partido”, não ao partido político, digo ao PCC. No entanto, alguns chefões do PCC na região estão colocando seus rebentos em escolas particulares longe deste círculo dos infernos, porque querem que seus filhos aprendam alguma coisa, e sabem dessa realidade, veja a que ponto chegamos. Não estou exagerando. A escola pública hoje é outra coisa, é um clube, é um ponto de encontro, é quase um espaço fake onde tem gente que finge pateticamente ensinar e não consegue ensinar nada, e onde tem outros que nem mais fingem aprender porque não aprendem e nem querem aprender nada. Afora os primeiros anos de uma reles alfabetização e ensino até deficiente de tabuada, o resto é farra e é zoeira, o resto é besteira, o resto é gozo banal mesmo, e digo a vocês que, hoje, nessas escolas, fumar maconha em sala de aula é um costume muito comum, relaxa, faz rir, né? Ninguém fala nada. Ninguém mais pia. Os professores se calam e apenas se acostumam com o cheiro forte da cannabis sativa, sim, não estou brincando. E digo a vocês que os professores não conseguem mas dar um stop a essa galera de gracinhas adolescentes, e nem a diretoria consegue mais dar o stop. Por que? Principalmente porque os adultos têm medo, medo mesmo, e porque é mesmo perigoso, e porque a “ideologia oficial” conspira contra o professor e a favor do aluno sempre. Porque os professores podem tomar um tapa ou um soco na cara de alunos, e o aluno é a “vítima da violência estrutural” e ele é intocável, e ademais o aluno tem suas manhas, suas gangues, e é muitas vezes “folgado” e terrível, e assim os professores silenciam. Reina hoje a permissividade, e a escola pública virou literalmente um espaço dominado por marginais, onde os que não são assim também se calam e se encolhem nos seus cantos. Parece cadeia, e daqui a pouco vai ser que nem cadeia e vão dizer assim: ah, essa escola é do PCC, aquela escola é de outra facção. Não duvidem. O problema não está – repito – na grade, na falta de didática, na necessidade de reformar os métodos de ensino. O problema não está em nadinha disso. O grande e cabeludo problema é o seguinte: chegamos ao descalabro de uma inversão de valores, em que o professor e diretores estão submissos aos caprichos do rei aluno, do reizinho marginal e intocável, do reizinho vítima. Esta é a realidade, e ela é assustadora. E ainda tem um outro lado. As escolas públicas são custosas, têm sua polpuda folha de pagamento e muitos gastos no fundo praticamente inúteis, para nada, porque não se aprende mais nada, e todo mundo passa de ano, e há muitos alunos que terminam o segundo grau analfabetos. É por isso que os alunos brasileiros, mormente os de escolas públicas de periferia e também os de muitas escolares particulares igualmente fajutas passam vergonha explícita em testes internacionais de avaliação e perdem de lavada para muitos países bem menos desenvolvidos do que o Brasil. Não porque brasileiro seja burro. Brasileiro não é burro, e aqui existe burrice sim, mas ela existe em todo lugar. Sim, meus amigos e conhecidos, esta é a vil e triste realidade calcada numa dupla tragédia: a falácia de que o aluno seja “vítima do sistema” e a limitação covarde, medrosa e perigosa de que o aluno já adquiriu poderes próprios e passou a ser uma ameaça, muitas vezes ameaça em potencial e cujo teor de ameaça é adubado pela impotência (real) de professores e diretores. Eis a fuzarca, eis a zona, eis a zorra total. Eis a escola que não serve para quase nada. A escola que nada ensina. A escola que finge ensinar para os relatórios burocráticos bestas que são de rotina encaminhados para as secretarias e também para o Ministério da Educação. E lá se vai muito dinheiro público, e lá se vai tanto dinheiro gasto com construções de prédios, com corpos docentes, com outros empregados, com material didático, etc e tal, para dar com os burros nágua. Sem exagero. E tudo isso não é culpa da maconha não, e eu não tenho nada contra a maconha. Não é a droga a culpada não. Talvez nem exista culpa propriamente dita e sim fatos e circunstâncias gritantes, ou seja, existe uma realidade gritante. É o que está aí, um mundo fake ou semi fake, um mundo de faz de conta. Temos a escola que não ensina porque não consegue mais ensinar, porque já desistiu de maneira realista de ensinar. Tudo mudou. Para pior, é claro, mas mudou, e ainda pode piorar mais enquanto na nossa sociedade segue a catilinária de blás blás blás de esquerda tola romântica e de direita tóxica nazifascista na era maldita Bolsonaro. A situação é embaçada, terrível. Eu tenho tido meus excelentes contatos, e eu mesmo tenho ido a várias escolas para dar palestras sobre drogas, e só consigo me dirigir de verdade aos alunos quando quebro as regras e uso recursos descarados de teatro e de atuação, e aí eu consigo captar um pouco o espírito da turma. Fico desolado, porque há uma moçada bonita, meninos e meninas com potencial, muita gente bacana e perdida nessa muvuca dos infernos, nessa cultura nefasta de vitimização, de abandono, de hipocrisia, e de não imposição de regras e limites porque o aluno é rei e porque os professores e diretores têm medo, e porque o medo tem fundamento, e porque pode ser realmente perigoso. Sim, está assim, e piora cada vez mais. Por isso não se aprende mais nada. E, reparem bem agora. Não tem essa de professor ensinado “marxismo” nas escolas, porque o professor não consegue ensinar marxismo, nem fascismo, nem ismo nenhum. Se os professores ditos de esquerda conseguissem fazer os alunos aprenderem marxismo seria uma glória didática. Nem na universidade se aprende direito o que é marxismo. Tolice. Tolice. Ninguém mais aprende e ainda não deseja aprender. A curiosidade epistemológica não existe mais nessas escolas. A verdadeira escola mudou de posição. Hoje a escola na periferia de Guainanases e de Cidade Tiradentes é o you tube, o Face, as redes sociais, o celular, e também e muito, e bastante, é o crime, a escola abrangente do crime, do tráfico, que por vias estapafúrdias vai ensinando o moleque a ser “homem” e marginal com os velhos códigos de facção machistas e perigosos. Não se iludam: a contravenção também ensina, forma e deforma, mas ensina. A escola também é um pouco o baile funk todo final de semana, com seu aprendizado de artes musicais e coreográficas e com suas iniciações sexuais na malícia e no despudor, no descaro, por vezes total. E sempre há, como sempre a tal escola da vida, a escola das patotas mais inocentes e das gangues mais perversas. Essas escolas alternativas existem, ensinam valores enviesados mas ensinam, enquanto as escolas oficiais modorram morrendo aos poucos como meros espaços de encontros e de farras, ou então como fornecedoras de alimentos para famílias carentes, ou como clubes beneficentes onde os meninos e meninas comem, ficam livres temporariamente dos pais, afora brincarem do que jeito que bem entendem. Seria mais ou menos isso. E digo mais e repito. Não existe solução alguma mediante reformas didáticas enquanto reinar a permissividade e o empoderamento do aluno como rei e como eterna “vítima do sistema” ou como “vítima que reproduz uma violência ou um racismo estrutural” . Não estou negando nem a violência doméstica e nem o racismo. São fatos incontestes. Estou me posicionando francamente contra a mega estupidez de se querer um ensino sem disciplina de verdade. Aluno que desvia, que apronta feio, que desobedece, que afronta precisa ser punido de verdade, pra valer. Não é preciso bater nem espancar ninguém. Porém o aluno não pode ser rei, não pode afrontar o professor lhe dando uma cusparada ou um soco na cara e nada acontece. Porque nada acontece mesmo, e não estou brincando. Eu já fui a várias escolas. Certa vez fui discutir o mega problema de um menino de quatorze anos que estava criando uma célula do PCC dentro da escola. Ele era um psicopatinha que agrediu fisicamente uma professora e um professor e que – este já é demais, este é um caso além dos limites – pois ele apavorou alunos e pais de alunos. É claro que este menino não é um tipo comum, mas há vários, há inúmeros com menos psicopatia do que ele, e mais maneiros e até “legais”. O pior não é isso. O mais horroroso é que não se conseguia tirar ou expulsar o menino da escola. O juiz não deixou. Porque o coitado do pobre menor intocável devia ser recuperado, porque, afinal de contas, ele é “vítima de uma sociedade violenta” e deve ser ressocializado dentro da escola e danem-se os diretores e professores, virem-se. Pintou o desespero geral. Eu fui numa reunião e os professores e a diretora estavam histéricos e apavorados. Ah, eles estavam enxergando a realidade com lentes de aumento é verdade, pois esse era um caso escabroso, mas como esses ou um pouco menos do que esse há muitos, não se iludam. O espaço escolar agora é o domínio do aluno rei, do menor rei intocável, da pobre vítima, que no fundo deve ou precisa ser um doce de pessoa, porque é a sociedade capitalista e neoliberal que o estraga. Oh, que comoção, oh, que raciocínio “brilhante”, não é meus amigos? Em resumo: a questão não é de esquerda ou direita, de comunismo ou de capitalismo, nem de petismo ou de não petismo. A questão transcende, ou ela fede, ou transfede. Ela extrapola. Abram os olhos, e não caiam em esparrelas tolas e românticas. Não caiam em conversas de certas autoridades públicas que são apenas funcionários interessados em manter seus salários. A realidade é escabrosa. Terrível. A culpa não é da maconha, da pobre cannabis sativa. A culpa, bem a culpa, nem é bem a culpa. Trata-se de uma ignorância monumental, de uma mega estupidez, de uma cegueira de não querer ver. Acreditem no que eu estou falando. Estou há mais de vinte anos trabalhando na periferia e não sou marinheiro de primeira viagem. Conheço coisas que Deus duvida. Sou testemunha indireta dos fatos. Vejo as pessoas, e com elas converso de verdade. As pessoas simples dizem muito, há depoimentos impressionantes. A realidade pode até superar a ficção. Se quiserem eu conto muitos casos escabrosos que podem valer crônicas pesadas. Mas fica para outra ocasião. Eu deixo aqui meu manifesto sobre nosso ensino público. Está desse jeito, creiam. Se houve algum exagero da minha parte, foi muito pouco. Pela emoção.


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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