Entrevista com o especialista Alexandre Quelho Comandule
1. Qual a preocupação principal frente à atual pandemia de Coronavírus (COVID-19) e os usuários de substâncias psicoativas em situação de rua?
Os usuários de substâncias psicoativas (SPAS) que estão em situação de rua estão em extrema vulnerabilidade pois carecem de condições de higiene adequada, sendo essa uma das principais formas de prevenir a alta transmissibilidade; acabam por compartilhar objetos entre si, como a garrafa de beber água ou bebidas alcoólicas, como compartilham o mesmo cigarro, ou até o mesmo cachimbo; e não respeitam as medidas de isolamento ou restrição de contato.
2. Qual a droga que pode estar mais relacionada a riscos para dependentes químicos e o Coronavírus?
O indivíduo quando sob efeito de qualquer droga pode se colocar em risco por diminuir a atenção e os cuidados que no momento são fundamentais para evitar a doença. Mas, pode-se afirmar que todas as drogas fumadas (cigarro, narguilé, maconha e crack) têm potencial de agredir o pulmão e por isso tendem a ser diretamente ligadas ao risco de pior evolução dos quadros de COVID-19. É importante lembrar que a maconha também prejudica o pulmão, ou seja, a fantasia de que a maconha não faz mal para o pulmão não é verdade. Assim como o cigarro, a maconha também libera alcatrão quando fumada e ele é uma substância extremamente irritativa das vias aéreas.
Portanto, as drogas fumadas pioram o quadro pulmonar e tendem a agravar os sintomas daqueles que estiverem contaminados com o Coronavírus. É importante relembrar que um dos sintomas da COVID-19 é a dispneia, isto é, falta de ar. Logo, se você possuí um pulmão que sofre por conta de uso de drogas fumadas, você tende a apresentar maior dispneia além de ter uma chance maior de evoluir para pneumonia e necessitar de suporte ventilatório.
3. Como o cigarro pode ser um facilitador de riscos em tempo de Coronavírus?
Devido à alta infectividade do Coronavírus, o simples ato de tirar um cigarro do maço com a mão contaminada já pode ser o suficiente para a transmissão, uma vez que o filtro do cigarro é local onde se toca para tirá-lo do maço, e também é o filtro que entra em contato direto com a boca. Portanto, compartilhar um cigarro sem ter feito a higienização da mão antes pode ser fonte de transmissão. Também existe o costume de fumar em conjunto, principalmente quando se usa narguilé ou maconha, e se um usuário estiver infetado ele contaminará todos ou outros com o COVID-19.
Outro fator de risco é a bronquite crônica, que acomete grande parte dos fumantes. Por conta deste quadro é comum que o tabagista apresente tosse, e assim tem maior disseminação de perdigotos (gotículas de saliva) contaminadas. Além da transmissão, também existe o problema de que todas as drogas fumadas (cigarro, narguilé, maconha e crack) têm potencial de agredir o pulmão e por isso tendem a ser diretamente ligadas ao risco de pior evolução dos quadros de COVID-19.
4. Quais riscos podem afetar usuários de drogas acometidos pelo Coronavírus?
Espera-se uma maior transmissibilidade do COVID-19 nessa população, porém o maior risco é a evolução desfavorável. O uso de drogas pode impactar de forma diferente cada pessoa, mas em geral ele fragiliza o sistema imune além dos agravos diretos que podem ocorrer em vários órgãos. Portanto, o usuário de substância poderá ter um quadro mais grave. Além do problema ser mais grave, após alguns dias de internação, este paciente poderá sofrer com sintomas de abstinência da droga.
Nesse sentido a equipe médica precisa lidar com sintomas secundários ao COVID-19 e, também, atuar sobre os sintomas que surgem em decorrência da falta da droga. Alguns pacientes podem apresentar maior agitação psicomotora e até tentar fuga. Esse é um quadro extremamente grave, pois um paciente com COVID-19 se dirigindo a um ponto de venda e uso de drogas poderá contaminar muitas pessoas.
5. Que medidas poderiam ajudar neste cenário?
É necessário reconhecer que os pacientes dependentes químicos fazem parte de uma população de risco. A equipe médica precisa estar atenta às comorbidades que os pacientes de COVID-19 possuem, sendo imperativo investigar o uso de drogas. Gostaria de fazer um alerta com relação ao quadro denominado Síndrome Pulmão do Crack. Esta é uma síndrome pulmonar aguda que ocorre em alguns pacientes após fumar esta droga e esse quadro evoluí com falta de ar, assim como a COVID-19.
Os exames de imagem também podem confundir os médicos, pois a Tomografia Computadorizada (TC) evidência padrão em vidro fosco, o mesmo padrão encontrado em pacientes da COVID-19. Nesse caso, é necessário fazer um diagnóstico diferencial.
6. Qual impacto seria esperado para tais medidas?
O correto diagnóstico e avaliação das comorbidades permitem uma terapêutica adequada. Está sendo esperado nos próximos meses um aumento da demanda nos serviços médicos, e o manejo adequado depende diretamente de um diagnóstico apurado. Fazer a suspeita de COVID-19 e ignorar os sintomas de dependência não é tratar o paciente de forma adequada, uma vez que os sintomas de abstinência poderão aparecer. Muitas vezes a agitação do paciente dependente químico em abstinência pode colocar a equipe e outros pacientes em risco.
7. Já há estudos relacionados ao Coronavírus e a dependência química?
De acordo com o National Institute of Drug Abuse (NIDA), o uso de drogas pode piorar o impacto do COVID-19 na saúde. O NIDA enfatiza que o uso de tabaco de vaporizadores (cigarros eletrônicos), além do uso de outras drogas como os opioides tornam os dependentes mais vulneráveis ao COVID-19 – que é uma doença nova e que os grandes estudos relacionando-o com a dependência química ainda estão por vir.
8. O que o motiva a trabalhar com este tema?
Quando eu estava estudando psiquiatria, o paciente dependente químico me parecia ser o mais complexo do ponto de vista do tratamento. Foi a minha curiosidade em tratar os casos mais difíceis que me levou a estudar e me aprofundar neste tema. Hoje eu sei que a comorbidade entre doença mental e o uso de drogas é regra, e não exceção. Infelizmente o estudo das técnicas modernas de tratamento e manejo de pacientes dependentes químicos ainda não faz parte da maioria dos programas de residência médica em psiquiatria no Brasil.
9. Como o Obid pode contribuir para em seu trabalho?
Em um momento delicado para a Saúde Pública, levar informação de qualidade ao público e aumentar a consciência sobre o que estamos enfrentando pode ser nossa maior arma de prevenção.
Alexandre Quelho Comandule é psiquiatra na Clínica Gressus. É médico psiquiatra e psicólogo, formado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), fez Psiquiatra da Infância e Adolescência, na UNICAMP, e especialista em Dependência Química pela UNIAD/UNIFESP. Também é professor do MBA em Dependência Química da UNIFESP e preceptor do Programa de Residência Médica em Psiquiatria na Santa Casa, em Sorocaba.
Fonte: http://mds.gov.br/obid/entrevistas/alexandre-quelho-comandule