Entrevista com o médico, Ph.D. em psiquiatria Valentim Gentil
A maconha foi uma droga sem maior apelo até o final dos anos 1960 – irrelevante como alucinógeno; mais sedativa do que estimulante; baixa potência em seus efeitos; malcheirosa; usada por pessoas sem maior visibilidade social. Tudo isso, aliado a uma forte política de combate ao seu uso desde os anos 1930-1940. Nos anos 1960, com a identificação dos canabinóides, como o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), e dos seus receptores e, depois, do Sistema Endocanabinóide, o interesse científico foi crescente. Simultaneamente, o cultivo e a comercialização de variedades com maior concentração de THC e menor ou nenhum teor de CBD (o skunk = gambá, pelo mau cheiro) transformaram a Cannabis em um poderoso e perigoso psicotrópico. O principal motor para a ampliação do seu uso hoje é o interesse comercial.
Existe maconha medicinal?
A legalização de preparações herbais da Cannabis (a maconha é uma delas) para fins medicinais foi influenciada pela tradição do uso dessa planta desde a antiguidade e por alguns efeitos terapêuticos ainda dependentes de comprovação. Ela tem muitas substâncias cujos efeitos são indeterminados, tanto do ponto de vista de eficácia terapêutica, dosagem, indicação diferencial, como de toxicidade. Por isso, não pode ser considerada “medicinal”. São centenas de compostos potencialmente tóxicos. Nenhum produto medicinal pode ser registrado sem essas informações. O uso “medicinal” tem sido o álibi para a liberação do uso recreativo, conforme fartamente documentado. Não há como justificar tal uso sem comprovação de eficácia, segurança e toxicidade. As evidências de risco de efeitos neurotóxicos são muito consistentes.
É seguro utilizar canabidiol (CBD) como medicamento?
É mais seguro do que usar preparações totais da Cannabis, do que usar o THC, e mais seguro do que os agonistas sintéticos do Sistema Endocanabinóide (hoje são quase 200 moléculas sintetizadas e comercializadas clandestinamente, com maior afinidade e potência do que o próprio THC). Entretanto, falta a comprovação da segurança a longo prazo do CBD. Isso requer a monitorização permanente de todos os medicamentos lançados após seu registro para uso medicinal. Ainda há dificuldade em comprovar a eficácia diferencial do CBD (e do THC) em relação aos tratamentos já disponíveis, suas doses, indicações específicas e seus efeitos colaterais. É indispensável determinar a segurança para diferentes grupos etários e para as condições de saúde de quem for receber esse tratamento. Deve-se fazer isso sem pressões ou atropelos.
Existe teste para saber quem tem predisposição genética para psicose?
Não. Sabemos que existem vulnerabilidades congênitas e adquiridas. Elas podem resultar de herança genética, infecções maternas, disfunções no parto, doenças na infância, traumas físicos e emocionais, além de outros fatores ambientais. Sempre que alguém fica doente supomos alguma vulnerabilidade e algum desencadeante imediato. Mas isso é “a posteriori”. Podemos recomendar que quem tem história familiar ou pessoal de problemas psiquiátricos, ou experiência anterior de sintomas psicóticos após o uso de drogas, evite as substâncias associadas a psicoses ou outros transtornos mentais. Isso não significa que os demais estão protegidos. As drogas comprovadamente relacionadas com a esquizofrenia são a Cannabis (maior se for uso precoce, frequente e de alto teor de THC) e a metanfetamina.
O que representaria a hipótese de liberar o uso de maconha?
Quando o governo legaliza uma substância, ele indica que ela é suficientemente segura para a população. Medicamentos com risco de toxicidade recebem importantes restrições em seu registro. Para uso social, como no caso do álcool e do tabaco, existem normas regulamentares que deveriam ser obedecidas. A magnitude dos efeitos nocivos da maconha ainda é subestimada. Sua legalização resultaria em aumento do risco de efeitos irreversíveis, principalmente em jovens, durante o desenvolvimento e maturação do sistema nervoso e da personalidade. Álcool e tabaco são nocivos de outras formas, mas não atuam nos receptores de canabinóides prejudicando a maturação do sistema nervoso central. A liberação do uso da maconha seria temerária e irresponsável.
O que representaria o fechamento dos hospitais psiquiátricos?
Isso foi tentado em outros países, mas jamais implementado completamente. Seria um absurdo privar a população de um equipamento médico. A proposta de fechar os antigos hospitais-asilares onde, por falta de alternativas e tratamentos eficazes, se internavam doentes graves até então abandonados pelas ruas, ou que estavam em cadeias e prisões e voltar a acolhe-los na comunidade, foi um experimento social fracassado em todo o mundo. O fechamento indiscriminado de 80% dos leitos psiquiátricos no Brasil, sem substituição por alternativas eficazes de atendimento nas últimas quatro décadas, levou a uma desassistência parecida com aquela do século XIX, só que mais injustificável, por dispormos de tratamentos eficazes, configurando, assim, grave omissão de socorro.
Por que hospitais psiquiátricos são importantes para o tratamento dos doentes mentais?
Porque existem estados agudos ou agudizados que não podem ser atendidos em equipamentos ambulatoriais ou comunitários. Exemplos incluem crises de agitação psicomotora, agressividade, confusão mental, risco imediato de suicídio, procedimentos de diagnóstico que demandam observação ou registros prolongados, tratamentos que exigem supervisão constante, necessidades de acolhimento que não possam ser oferecidos em outros locais, estados de intoxicação requerendo cuidados intensivos, quadros fóbico-ansiosos que demandem intervenções intensivas, manifestações psiquiátricas decorrentes de doenças clínicas, entre outros. Os hospitais devem ter recursos humanos e tecnológicos mais complexos do que os dos ambulatoriais e centros comunitários.
O que o motiva trabalhar com este tema?
Sou testemunha da evolução dos conhecimentos e da eficácia dos tratamentos psiquiátricos nas últimas décadas e me sinto gratificado por poder colaborar para o aperfeiçoamento das nossas instituições e políticas de saúde mental. Visitei centros avançados e aprendi a lógica de diversas propostas de atendimento aos pacientes psiquiátricos e às suas famílias, valorizo as contribuições das diferentes disciplinas e equipes dedicadas a esses cuidados e a investigação clínica e científica dos mecanismos de doença e recuperação. Aprendi, também, que a prevenção primária é a melhor forma de promover a saúde, mesmo que tenhamos tratamentos muito eficazes para os doentes. No caso das psicoses irreversíveis, como a esquizofrenia, evitar o primeiro episódio é essencial. A maconha faz o oposto disso.
O que representa o Obid para seu trabalho
Representa o compromisso do governo federal em investir na prevenção dos danos à saúde física e mental induzidos pelas drogas, informando-nos a todos, de forma objetiva e confiável, em um momento em que grande parte do que chega à população e aos profissionais de saúde é deliberadamente distorcido por interesses não declarados, sejam eles de natureza filosófica, ideológica, política, comercial ou qualquer outro. Espera-se que nossos governantes, representantes no Legislativo e membros do Poder Judiciário se valham dessas e de outras informações fidedignas em suas difíceis atribuições, para bem cumprir a determinação constitucional de promover a saúde como um direito humano fundamental. Tinha mesmo que estar no Ministério da Cidadania. Muito obrigado.
Valentim Gentil é médico, Ph.D. (Londres), livre-docente e professor titular aposentado de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: Obid – Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas