Da rocinha às drogas
Guilherme Athayde Ribeiro Franco (*)
O maior complexo de violência estrutural produzida pela negação de direitos básicos à moradia, à saúde, à educação, à mobilidade e à segurança, na zona sul carioca, situa-se perto de elegantes bairros como São Conrado e Gávea.
A comunidade – há quem diga que hoje está na casa de cem mil pessoas – experimentou seu boom de crescimento desordenado na década de 70 do século passado. E não parou mais.
O que antes eram ocupações de pequenas chácaras, com produção de agricultura familiar (daí o poético nome: Rocinha), foi levada à fatídica missão, em benefício do progresso a alguns, de receber e fornecer mão de obra barata e pouco qualificada para os mares nunca dantes navegados de concreto e asfalto.
Depois disso, território sem dono, sem cuidado e sem voz, deu margem à ocupação não dos cafezais, bananeiras ou hortaliças -mas sim da criminalidade organizada. Que comanda não só o comércio de psicoativos, como também de armas de fogo, explosivos e subjuga cidadãos honestos exigindo-lhes taxas para utilização de gás de cozinha em suas casas.
Hoje é o epicentro de (mais) uma guerra. Entre as forças da ordem pública e os que mercadejam com o cérebro e a saúde alheia. O Estado vive um impasse – porque falhou em políticas públicas comezinhas voltadas a famílias, crianças e adolescentes; e o mercador de cérebro se aproveita das vielas que serpenteiam o morro mal urbanizado, em um conflito que se sabe como se inicia, mas não como termina.
Enquanto isso, parte da mídia (democrática concessão do poder estatal, reforce-se), ao invés de compreender que na verdade há uma disputa por espaço em um vasto mercado que serve à sociedade acéfala de valores (sedenta de prozacs tropicalizados, a principiar pela droga de maior prevalência, o álcool), bate-se pela legalização e liberação do plantio não de salsinha, cheiro-verde ou assemelhados. Mas de cannabis – planta que pode passar de quatro metros de altura – geneticamente modificada e muito mais lesiva aos neurônios adolescentes que a experimentada pela geração flower power.
Colhem-se até vozes respeitadas para alardear que quando um fruto deixa de ser proibido, deixa de ser desejado. Esse raciocínio, entrementes, não se sustenta em termos epidemiológicos. Pois maior a oferta da substância, maior o consumo.
Aliás, essa visão de mundo ignora detalhes perceptíveis tanto ao cidadão comum, quanto aos especializados em questões de saúde e segurança pública. Palmar que com a almejada legalização, os que se dedicam ao crime não vão correndo abrir suas microempresas individuais para comercializar um só tipo de produto – imaginemos que seja maconha, tal qual no Uruguai, com concentração de THC na casa de 2%, mostrada en passant na reportagem do Fantástico no dia 24.9 pp.. Tampouco entregarão o seu arsenal à Polícia.
Há relatos de autoridades uruguaias[1] no sentido que o tráfico não diminuiu por lá. Ora, a maconha “oficial” não tem a mesma concentração de THC que a fornecida pelo que se convencionou chamar de Narcosul: na casa de 15% de THC ou mais.
Um dos critérios para se aferir a dependência química é o da tolerância. Ou seja: doses maiores da substância se fazem necessárias para que se alcance o efeito desejado pelo usuário. Por que no Brasil seria diferente?
Pode-se até cantar: “maconha na tabacaria, drogas na drogaria”, ou que esta terra ainda vai cumprir seu ideal, tornando-se um imenso maconhal. Contudo, os mais vulneráveis continuarão lá atrás do ônibus, diria Rosa Parks.
E a Constituição da República, conquanto de clareza ímpar, no sentido de que o Estado deve primar pela proteção integral – isso abarca o sistema dopaminérgico – de crianças, adolescentes e jovens – vira apenas um quadro na parede da memória. E como doi.
[1] https://g1.globo.com/mundo/noticia/legalizacao-da-maconha-nao-diminuiu-trafico-no-uruguai.ghtml
*Guilherme Athayde Ribeiro Franco
Promotor de Justiça e Especialista em Dependência Química pela UNIFESP