Estudo mostra aumento de locais usados para consumo de drogas
Cruzeiro do Sul – Sorocaba e Região
Larissa Pessoa
Fernanda*, 27 anos, bem vestida e usando uma correntinha de ouro no pescoço, deixa a filha de quatro anos na escola e segue para um ponto usado para o consumo de drogas na avenida Ulisses Guimarães. Junto de mais uma dezena de usuários, entre homens e mulheres, ela conta que vai até o local escondida da mãe que ainda não sabe da recaída da filha, usuária de crack desde os 17 anos. Para justificar o consumo de crack, ela resume: “É mais forte do que eu.”
Para alimentar o vício, Fernanda, que está desempregada, chega a recorrer à prostituição. Conta que sente medo, mas o vício fala mais alto e diariamente ela vai até o local após deixar a filha na escola. A mulher conta que pensa em pedir ajuda para a mãe, que, segundo ela, nem imagina que as drogas voltaram a fazer parte de sua vida. “Meus pais me internaram algumas vezes e minha mãe acredita que eu parei mesmo”, conta, chorando.
Fernanda é uma mulher bonita, casada com uma pessoa que também é usuária de crack, e teme começar a apresentar sintomas físicos causados pelo consumo da droga. “Não quero ficar parecendo uma caveira”, confessa. Com algumas joias, ela conta que a gargantilha que usa é de ouro, mas que não tem coragem de trocar por crack pois o pingente simboliza sua filha.
Redutos para o consumo
A avenida Ulisses Guimarães é um dos 49 pontos utilizados por grupos para consumo e venda de drogas — entre elas crack — e bebidas alcoólicas existentes em Sorocaba. Os dados são baseados em um mapeamento realizado neste mês pela Comissão de Dependentes Químicos da Câmara Municipal de Sorocaba. Em 2013, em reportagem publicada pelo Cruzeiro do Sul, o mesmo estudo apontava dez locais usados por dependentes químicos.
O aumento de pontos de consumo de drogas apontado pelo mapeamento da Câmara Municipal tem diversos motivos, segundo o professor Marcos Roberto Vieira Garcia, do Departamento de Ciências Humanas e Educação do Campus Sorocaba da UFSCar e coordenador do Centro de Referência em Educação na Atenção ao Usuário de Drogas da Região de Sorocaba. Entre essas razões, o professor aponta a falta de políticas públicas voltadas aos dependentes químicos, o baixo custo dos entorpecentes e a força do crime organizado e do tráfico de drogas. “O crack é um derivado da cocaína e os dois são muito mais baratos hoje do que há 10 ou 15 anos.”
O professor, porém, pondera sobre o estudo e afirma que é preciso avaliar os dados apresentados com cautela. “Tem que analisar como foi feito esse estudo e não tratar apenas dos números”, afirma. Para o vereador Rodrigo Manga (DEM), autor do mapeamento e presidente da Comissão de Dependentes Químicos da Câmara de Sorocaba, o estudo evidencia a necessidade de oferecer um tratamento efetivo aos usuários, que não permita o retorno ao vício. “São necessárias ações pontuais para evitar o crescimento ainda maior do número de minicracolândias”, defende o parlamentar.
Maconha, crack e cocaína
No mesmo ponto utilizado por Fernanda também estava Reginaldo*, 41, usuário de crack, cocaína, pinga e maconha. O vício surgiu aos 16 anos e, entre recuperações e recaídas, deixou a família para trás e hoje passa os dias sob efeito de drogas. Guilherme*, 37, também estava no terreno baldio na avenida Ulisses Guimarães e, sob efeito de maconha, relatou que a dependência do crack é muito forte. Para manter o vício já praticou assalto e por isso ficou preso por seis anos. Hoje, com a liberdade de volta, continua se sentindo em celas. “Quando vem a abstinência, a gente faz qualquer coisa. Hoje, para não roubar, eu vendo canetas.”
Falta de perspectiva
A médica Vilma Carmona, afirma que os motivos que levam uma pessoa ao consumo de entorpecentes são diversos. “A gente entende que a droga é uma consequência de uma história de vida.” Ela chama a atenção para a falta de entendimento da sociedade diante da dependência química, “pois as pessoas julgam o usuário como vagabundo e fraco, mas ninguém conhece a história de cada um e é isso que leva ao descontrole.”
O professor Marcos Garcia destaca que a maioria dos usuários que fica nesses pontos de consumo são indivíduos em situação de alta vulnerabilidade social. “O desemprego, a falta de moradia, a falta de assistência de saúde, não ter acesso à educação de qualidade — enfim, são todos agravantes que podem ter como destino o vício.” Segundo o especialista, é preciso entender que não há uma solução rápida e 100% eficaz para o problema.
Pessoas de classes sociais mais abastadas, afirma Vilma, também podem se envolver com drogas e isso vem, igualmente, da vulnerabilidade causada por fatores como a falta de diálogo e atenção entre os familiares.
“Minicracolândias”
Assim como a imprensa em geral, o vereador Manga intitula as áreas de tráfico e consumo de entorpecentes de “minicracolândias”, em uma referência à área que concentra viciados na capital paulista. O uso desse termo, porém, é condenado por especialistas e pessoas que também trabalham com dependentes químicos. Para Garcia, coordenador do Centro de Referência em Educação na Atenção ao Usuário de Drogas da Região de Sorocaba, associar esses locais ao ponto de São Paulo soa de forma pejorativa e estereotipa o dependente. A psicóloga Marta Meirelles também destaca que o termo, que em tradução livre significa “minicidade do crack”, desumaniza o usuário.
*Os nomes utilizados na reportagem são fictícios para que a identidade dos entrevistados seja preservada.
São 49 os pontos que concentram usuários
O estudo realizado pela Câmara Municipal aponta que Sorocaba tem pelo menos 49 pontos utilizados por grupos para consumo e venda de drogas, entre elas crack e bebidas alcoólicas. Atualmente, a zona norte é a região que concentra o maior número dessas áreas, com 18.
A região norte, que é a maior da cidade, conforme o levantamento, tem os locais mais críticos no Parque das Laranjeiras, com seis pontos de consumo e venda de entorpecentes. Na zona oeste foram diagnosticados dez locais utilizados para uso de substâncias ilícitas e álcool em vários bairros, entre eles o Jardim São Marcos e Júlio de Mesquita Filho, com quatro cada. A maior parte das áreas utilizadas pelos dependentes químicos se encontra próxima a escolas, parques e linhas férreas.
Conhecido ponto de concentração de pessoas em situação de rua, a região central também é uma localidade comum de consumo de drogas, principalmente nas imediações do terminal rodoviário da cidade. Na praça Castro Alves, conhecida com praça da Mãe Preta, assim como vários terrenos e calçadas ao longo da avenida Juscelino Kubistchek de Oliveira, é possível observar, mesmo durante o dia, pessoas se drogando. Há pontos também nas ruas Pandiá Calógeras, Santa Clara, Bernardo Guimarães e avenida Comendador Pereira Inácio, em frente à Etec Rubens de Faria e Souza. Nesta região, o total é de 11 locais.
As zonas leste e sul somam dez áreas de concentração de usuários de entorpecentes, entre eles, dois em Pinheiros, dois no Barcelona e dois na Vila Assis. Entre a Vila Zacarias e Vila Sabiá também há um ponto que já havia sido diagnosticado no levantamento feito em 2013 e segue sendo utilizado por dependentes e traficantes.
Abordagem
A Guarda Civil Municipal (GCM), de acordo com a Prefeitura de Sorocaba, desenvolve um trabalho de abordagem e prevenção ao tráfico e consumo de drogas. “Sempre que identificado um ponto ou concentração de usuários de drogas, a GCM, em conjunto com outros órgãos públicos, como a Polícia Militar, Secretaria de Igualdade e Assistência Social (Sias) e outros, realiza ações coercitivas e de orientação ao usuário, cabendo à Sias e ao serviço público de saúde o seu encaminhamento para tratamento e acompanhamento”, informou o município. Em nota, a GCM se coloca à disposição da Câmara para avaliar cada área de consumo apontada e buscar soluções conjuntas.
Hoje Sorocaba conta com dois serviços especializados gratuitos. De acordo com a Secretaria de Saúde, os Caps AD III funcionam pelo sistema de porta aberta, ou seja, não é preciso agendar horário ou ter encaminhamento de outra unidade para ser atendido. Além dos Caps, o dependente químico também pode ser internado na clínica do Grupo de Apoio e Combate a Droga e Álcool Santo Antônio (Grasa), que conta com 30 vagas masculinas e 19 femininas, onde o tratamento dura até seis meses.
A coordenação de Saúde Mental do município informou que está sendo verificada a possibilidade de ampliar ações, com a tentativa de adesão do município ao Programa Recomeço, uma iniciativa do governo do Estado de São Paulo para ajudar os dependentes químicos.
Redução de danos é estratégia usada com dependentes que não aceitam tratamento
Marta Meirelles, que é psicóloga com especialização em dependência química, presidente e fundadora da Associação Pode Crer, destaca que a ONG trabalha com a chamada política de redução de danos, que é preconizada pelo Ministério da Saúde. De acordo com Marta, quando a pessoa não consegue ou não quer parar de usar drogas, é preciso tentar ao menos que o consumo do crack seja reduzido. “Não acreditamos na internação e sim na inclusão”, diz.
A psicóloga trabalha com usuários de drogas há mais de 20 anos e destaca que é comum uma pessoa passar por muitas internações e voltar ao vício. Isso porque, afirma, após o tratamento, elas retomam a rotina que tinham antes e que dificilmente muda. A Associação Pode Crer também faz o trabalho de abordagem pelas ruas da região central visando a redução de danos, ou seja, oferecendo atividades e orientando os usuários.
Consultório na rua
Até 2015, Sorocaba contava com o programa Consultório na Rua, do governo federal, que consiste no atendimento móvel para dependentes químicos. Com o fim do contrato, porém, não houve renovação e o município deixou de oferecer o serviço. A médica Vilma Carmona coordenou o Consultório na Rua em Sorocaba e lembra que o tratamento ambulatorial tinha efetividade. A especialista avalia o suposto aumento no número de pontos de consumo de drogas como algo comportamental, pois, segundo ela, vícios sempre foram muito fortes, mas antes eram abafados e escondidos.
Marcos Roberto Vieira Garcia, da UFSCar, afirma que as abordagens até então realizadas pelo Consultório na Rua são essenciais para o dependente. Ele diz que, embora o Caps disponibilize atendimento para quem vai até a unidade, muitas pessoas não sabem ou não têm estímulo para ir até o local. “É preciso uma política de acompanhamento.” Segundo Marcos, Sorocaba é um dos municípios que aderiram ao plano de enfrentamento ao crack, mas não coloca projetos voltados a esse assunto em prática.
O vereador Rodrigo Manga conta que levará ao prefeito José Crespo (DEM) a proposta de um Caps itinerante ou o retorno do Consultório na Rua, que convide o usuário em situação de rua a se tratar. “O grande problema é que quem está nas drogas precisa ser chamado para a cura. Dificilmente vai por conta própria buscar ajuda”, diz o vereador. A Prefeitura de Sorocaba foi questionada sobre a implantação do programa e afirmou ter intenção de publicar um edital de chamamento no próximo semestre para a retomada do Consultório de Rua.