Entrevista – “A maioria aprende a beber em casa, com os pais. As crianças são estimuladas”

7 de outubro de 201716min379
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GAZETA Online

Nos 70 anos do Alcoólicos Anônimos, presidente nacional fala sobre como o grupo vem se modernizando para ajudar cada vez mais pessoas

Paula Stange Rosi

O álcool é uma das drogas mais consumidas no mundo. Pouca gente pensa no alcoolismo como uma doença que mata. E, se não mata, ela deixa sequelas graves na saúde do dependente e um dano muitas vezes irreparável na vida das pessoas que convivem com ele. Nesta entrevista, a presidente da Junta Nacional do Alcoólicos Anônimos (AA), Jaira Freixiela Adamczyk mostra como essa entidade, que tem mais de 5 mil grupos espalhados pelo país, vem se modernizando, ao longo de 70 anos, para ajudar cada vez mais pessoas a viver sem esse vício. 

Sendo uma droga socialmente aceita, pouca gente pensa que o álcool mata. O alcoolismo é uma doença crônica. Ele não tem cura, mas tem tratamento. É uma doença progressiva, comparada ao câncer. Ela continua se desenvolvendo. Muitas vezes é fatal. Mas responde gravissimamente no Brasil e no mundo como um todo pelo maior índice de demência alcoólica. Porque o álcool compromete o sistema nervoso do indivíduo, mas, na verdade, compromete todo o organismo. Digo que o álcool é a droga mais competente, porque deixa sequelas gravíssimas na vida da pessoa. A pior crise de abstinência é a do álcool. Ela gera alucinações, delírios, dores por todo o corpo e um comprometimento de todo o organismo. É impressionante a competência que o álcool tem.

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Como a gente pode identificar os primeiros sinais da dependência?

A família precisa estar atenta àquela pessoa para quem tudo é a bebida. Na conversa, ela cria logo um motivo para bebida. No final de semana, já quer agitar algo que tenha bebida. Começa a beber na sexta-feira, passa sábado e domingo alcoolizado e, na segunda, ao sair para trabalhar e estudar, está sofrendo as sequelas do álcool. Outro sinal é quem começa a beber logo pela manhã. Bebe sozinha muitas vezes, o que é um sinal muito grave. Quando ninguém mais está a fim de beber, ela continua. É preciso perceber a importância que a bebida tem na vida daquela pessoa. Ela só vai aos lugares se tiver bebida lá. Não vive sem o futebol no sábado, mas, na verdade, está mais ligado na cerveja depois da partida. Quando a pessoa depende da bebida para ser feliz, é sinal de perigo.

 

A última pesquisa do IBGE mostrou que mais da metade dos estudantes já experimentaram álcool. Por que os jovens estão bebendo mais?

O Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) tem nos alertado o quanto tem reduzido a faixa etária de crianças e adolescentes apresentando sequelas em relação ao álcool. É uma questão cultural. Para o jovem, sair para a noite significa fazer um “esquenta” antes e já chegar à balada alterado. É lá continuar bebendo, misturando com outras drogas. Tudo vira uma bola de neve. Temos procurado chegar às escolas, às comunidades, para dar esse alerta aos jovens. Infelizmente, não temos consciência a respeito da doença do alcoolismo como temos com relação ao tabagismo. Fora a campanha do “se beber, não digija”, o que mais existe para falar do alcoolismo? Os nossos filhos já são de uma geração antitabagista. Cresceram numa época em que fumar em local público foi proibido, em que as escolas falam sobre isso, mostram todas as doenças associadas ao uso do cigarro. Tomou-se consciência de que é doença. Mas não falamos claramente sobre pessoas que podem desenvolver uma doença chamada alcoolismo.

 

 Então há mais jovens buscando ajuda do AA?

Quando comecei a trabalhar com dependência química, 30 anos atrás, a faixa etária que vinha às reuniões era, em sua maioria, acima de 40 anos. Quando aparecia alguém com 25 anos, era uma comoção. A gente ficava muito assustado. Hoje em dia, a maioria nos grupos ainda é acima de 35 anos, mas recentemente participei de um grupo em uma cidade onde 80% das pessoas tinham menos de 25 anos. Já vi adolescente de 16 anos com dependência, porque começou a beber com 8 anos de idade, dentro de casa.

 

A maioria dos alcoolistas relata que com a beber em casa?

Sim. A grande maioria aprende a beber em casa, com os próprios pais. Ou com amigos. Mas em casa. Muitos pais dizem: “Quero que meu filho saiba beber” ou “homem que é homem bebe”. E a criança vai sendo estimulada ao uso da bebida alcoólica desde cedo. 

 

Qual o perfil de quem procura o AA? 

Quando comecei a trabalhar, em 1983, eu tinha nos grupos 15 homens alcoólicos para uma mulher. Hoje, a média é de 2 para um, e em algumas regiões do brasil dá empate. O alcoolismo feminino ainda é velado na sociedade, é muito solitário. Geralmente a mulher bebe em casa, escondido. A maior dificuldade no tratamento da mulher alcoolista é o próprio preconceito. 

 

Para as mulheres, a bebida tem um efeito ainda mais nocivo? 

É importante fazermos essa alerta. As mulheres que pensam em ter filhos ou são gestantes devem saber que o uso da bebida alcoólica durante a gestação leva ao desenvolvimento de uma doença chamada síndrome do alcoolismo fetal. Nela, o bebê nasce com uma sequela neurológica que irá comprometer todo o seu desenvolvimento: a criança irá falar mais tarde, andar mais tarde, terá dificuldade no aprendizado. Tudo isso fruto do álcool. A gente ainda vê o quanto as pessoas desconhecem o efeito do álcool no organismo humano.

 

O que a ciência já concluiu sobre o alcoolismo? Existe uma predisposição para a doença? 

Sim. Da mesma forma que o médico pergunta se tem um caso de câncer na família, ele deveria perguntar: tem algum alcoólico na família? Uma grande pesquisa feita na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, acompanhou um grupo por 60 anos, desde a infância. Aquelas crianças que tinham familiares alcoolistas mostraram mais predisposição para a doença do que outras que fizeram o mesmo uso de álcool ao longo da vida. Ou viraram alcoolistas ou vieram a usar outros tipos de drogas.

 

Como convencer uma pessoa de que ela precisa de ajuda?

É um grande desafio. Minha orientação é evitar fala quando a pessoa está sob efeito do álcool. Quando os pais presenciam aquele filho chegando da rua de madrugada, passando mal, vomitando na casa inteira, essa não é a melhor hora para fazer discurso. Tem que esperar o dia seguinte, chamar a sós, mostrar as consequências desse uso. Não apontar a pessoa, mas lembrar as consequências da doença. Os pais jamais devem ser permissivos, facilitadores.

 

E a pessoa que bebe há 40 anos? Ela ainda tem jeito? 

Claro! Temos pessoas que beberam por muito mais tempo, entraram para o AA e estão conosco até hoje. infelizmente, demoraram muito para pedir ajuda, e às vezes, as sequelas já existem. Mas os familiares podem buscar ajuda, levar a uma sala do AA ou do Alanon, que é o grupo de familiares do AA a mostrar a ele que existe ajuda. Às vezes, tem que tomar atitude, até fazer uma internação compulsória. Porque, para frequentar o AA, tem que querer. Digo para a família jamais desistir, que é uma doença. Não é uma pessoa que não tem força de vontade, fraca ou não tem fé. Sempre pergunto: se você tivesse um familiar com câncer, você desistiria dele? Elas dizem que não. Por que com o alcoolismo é diferente?

 

O que explica o sucesso do AA ao longo de 70 anos? 

Uma coisa é parar de beber, outra é a busca de um caminho de recuperação. O programa de 12 passos do AA leva o indivíduo a uma tomada de consciência, de que ele tem um problema com bebida, mas que também já perdeu o domínio sobre a vida dele. Quando ele começa esse caminho, a partir do 12º passo ele percebe o quanto a vida dele estava permeada de disfuncionalidade, que aquela família que estava ao lado dele estava tanto ou mais doente quanto ele. No AA, ele é recebido por um ex-alcoólico. E ninguém pergunta quem é você, onde você trabalha, quem é sua família, qual sua religião. Nada disso importa dentro do A.A. Dentro dessa rede de solidariedade, ele entra num programa e ouve pessoas com histórias de vida que têm tudo a ver com ele, ele desenvolve um vínculo, se vê no outro.

 

As histórias são todas parecidas… 

Sim. São histórias de muita dor, de muito abandono. Sempre digo que o alcoólico, antes de abandonar a família, ele se abandona. o alcoolismo só leva a perdas, primeiro da sua saúde, depois do trabalho, da própria família. Porque a família cansa, se esgota, vê que não dá conta daquela pessoa e não entende como ela continua bebendo depois de tantas perdas, de tudo que eles já passaram nessa família.

 

E agora o AA vai atrás das pessoas nas redes sociais? 

Temos essa ferramenta nova, que está funcionando há um mês, uma plataforma lançada no Facebook. Em um mês, 3 milhões de pessoas foram impactadas, acessaram. Ao longo do mês de agosto, 100 mil iniciaram uma conversa. Desses 100 mil, 60 mil eram jovens e mulheres. A ferramenta chega onde nós não conseguimos chegar. O impacto aumentou em mais de 20% o acesso aos grupos. Nosso site teve um aumento de 1.300% de acessos. Mas nada supera o atendimento tradicional, nos grupos, onde acontece o acolhimento, a troca. É quando a pessoa que está lá pela primeira vez ouve que ela é a presença mais importante naquele dia.

 

OS 12 PASSOS DO AA 

1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas

2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade

3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos

4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos

5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas

6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter

7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições

8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados

9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem

10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente

11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade e relação a nós, e forças para realizar essa vontade

12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades

Fonte: AA

 
 
 

Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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