Cracolândias: violento desfazê-las, violento mantê-las

23 de maio de 20177min10
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Estadão – Psiquiatria e Socieddae

Por Daniel Martins de Barros

foto: Olivia Heussler/www.clic.li

É uma ação violenta chamar a polícia para acabar com a cracolância. Não fazer nada pode ser ainda mais.

Sempre que alguma autoridade tenta intervir numa região onde usuários de droga de reúnem sistematicamente, invariavelmente a polícia tem que ser acionada. A repressão ocorre e as críticas abundam. Veja o caso das fotos acima, feitas em 1992. É de se perguntar que país é esse, repressor, que não respeitou o direito das pessoas de ficarem naquela praça, expulsando-as à força. Alguma república das bananas? Não. É a Suíça. Que precisou da polícia para fechar a praça Platzspitz, onde as pessoas usavam drogas livremente.

É absolutamente inevitável: onde há drogas, há violência. Seja no Brasil ou na Suíça, na sua casa ou na rua, na favela ou no palácio. Existem três grandes razões para isso, segundo o interessante modelo tripartite.

A primeira é a violência farmacológica. Dados de diversos tipos de crimes, em diversos países, mostram que frequentemente as pessoas envolvidas estavam sob efeito de drogas, fossem autores ou vítimas. Claro que a agressividade humana não se resume à intoxicação por substâncias, mas a ação dos psicotrópicos altera o funcionamento do sistema nervoso central, o que pode suprimindo a capacidade de controle dos impulsos ou deliberação consciente. Por isso é que usar drogas é um fator de risco conhecido para envolvimento com a violência.

A segunda razão é a violência para obtenção da droga. A maioria dos usuários não recorre à criminalidade para sua aquisição. Há, contudo, um pequeno grupo, sobretudo entre os dependentes mais graves, e de substâncias mais viciantes, que sofre uma desagregação tão grande da vida que fica sem meios de obter a droga se não o crime. As vítimas mais comuns são as pessoas que moram próximas a esses usuários, não raras vezes elas mesmas envolvidas com algum tipo de violência.

A terceira e última é a violência sistêmica. Dado o caráter ilícito de toda a cadeia de produção, distribuição, venda e consumo de algumas drogas, cria-se um universo paralelo, à margem da legalidade, mantendo o mercado das drogas em funcionamento à custa de muita violência, como se vê no modus operandi do tráfico.

No caso das cracolândias (como no caso da praça Platzspitz) quatro personagens diferentes se reúnem: usuários – que vão até lá para comprar, usando-as como um mercado; dependentes – que perdem o controle sobre o uso da droga, e em casos graves passam a morar lá; moradores de rua – sujeitos que têm inicialmente um problema social, ficando por isso em situação de rua, e que podem ou não usar drogas; traficantes – que lucram a custa dos outros.

Evidente que ações policiais não solucionam o problema dos três primeiros. Usuários e dependentes precisam de assistência à saúde, criminalizá-los não faz sentido. Dependentes e moradores de rua carecem de assistência social – não é preciso força bruta para isso. Mas é também evidente que ela é necessária para desmontar esses guetos controlados pelo tráfico e sustentados pela demanda de quem perdeu o controle sobre o uso da droga. É muita ingenuidade – ou muita má-fé – defender a manutenção desses territórios, cuja existência é por si só uma violação dos direitos humanos. Fingir que é possível recuperar as pessoas ali e deixá-las naquela situação por anos a fio é uma violência infinitamente maior do que qualquer ação policial.

Coisa que os suíços perceberam há um quarto de século.

ResearchBlogging.org
Goldstein, P. (1985). The Drugs/Violence Nexus: A Tripartite Conceptual Framework Journal of Drug Issues, 15 (4), 493-506 DOI: 10.1177/002204268501500406

 


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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