29 de março de 2024

Prevalência de transtornos psiquiátricos em jovens infratores na cidade do Rio de Janeiro (RJ, Brasil): estudo de gênero e relação com a gravidade do delito

5 de junho de 201145min0

Ciência & Saúde Coletiva
version ISSN 1413-8123
Ciênc. saúde coletiva vol.16 no.4 Rio de Janeiro Apr. 2011

doi: 10.1590/S1413-81232011000400017
ARTIGO ARTICLE

Prevalence of psychiatric disorders in juvenile offenders in the city of Rio de Janeiro (RJ, Brazil): comparison between genders and relation to the severity of the offense

Renata Candido de AndradeI; Francisco Assumpção JuniorII; Ivan Abdalla TeixeiraI; Vilma Aparecida da Silva FonsecaI

IDepartamento de Fisiologia e Farmacologia, Instituto Biomédico, Universidade Federal Fluminense. Rua Prof. Hernani Melo 101, São Domingos. 24210-130 Niterói RJ. vilma91@yahoo.com.br

RESUMO

Cresce no Brasil a prevalência de jovens infratores, principalmente do gênero feminino. A literatura aponta para prevalências aumentadas de transtornos mentais entre esses jovens em vários países, mas no Brasil faltam estudos. O objetivo é avaliar a prevalência de transtornos mentais em adolescentes sob medida socioeducativa, considerando como hipótese sua diferença entre gêneros com base no tipo de delito cometido. O instrumento usado foi o K-SADS-PL. Como resultados, alta prevalência de transtornos psiquiátricos entre adolescentes infratores, sendo os mais prevalentes: transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (33%), transtorno da conduta (77%), transtorno desafiador opositivo (50%), transtornos de ansiedade (70%), transtorno depressivo (50%), abuso de drogas ilícitas (70%) e abuso de álcool (52%). O abuso de álcool aumentou em 2,4 vezes a chance de um adolescente cometer delito violento. Esses dados sugerem às autoridades em saúde pública que tanto a detecção quanto o tratamento precoce de transtornos psiquiátricos na infância podem ajudar na prevenção de atos infratores. Sugerem também que o tratamento em saúde mental dos jovens sob custódia da lei deve ser parte fundamental da recuperação e da ressocialização deles.

Palavras-chave: Delinquência, Transtorno de conduta, Transtornos psiquiátricos, Jovens infratores, Abuso de drogas, Psiquiatria infantil

ABSTRACT

The prevalence of juvenile offenders in Brazil, mainly among young females, is on the increase. The literature on this issue indicates an increased incidence of mental disorders among young offenders in several countries, though studies in Brazil are lacking. The aim of this article is to study the prevalence of mental disorders in adolescents from a socio-educational standpoint, taking as a hypothesis the gender difference and the type of offense committed. The instrument used was the K-SADS-PL. As results, we found a high prevalence of psychiatric disorders among juvenile offenders, the most common being: attention deficit hhyperactivity disorder (33.3%); behavioral disorder (77%); oppositional defiant disorder (50%), anxiety disorders (70%), depressive disorder (50%), illicit drug abuse/dependence (70%), and alcohol abuse/dependence (52%). Alcohol abuse/dependence caused a 2.4-fold increase in the probability of adolescents committing a violent offence. Public health authorities should concentrate on early diagnosis and treatment of psychiatric disorders in childhood to reduce future violations. It is also suggested that mental health treatment of detained juveniles should be a fundamental part of the recuperation and reintegration of young offenders into society.

Keywords: Delinquency, Behavioral disorder, Psychiatric disorders, Juvenile offenders, Drug abuse, Child psychiatry

Introdução

Os estudos de prevalência de transtornos psiquiátricos em jovens infratores têm demonstrado prevalências particularmente elevadas neles em relação à população geral em vários países. Essa constatação é de importância para o planejamento e implantação de políticas de saúde pública que visem tanto à prevenção da infração quanto mesmo à recuperação de jovens infratores. Apesar de esse tema ser bem estudado em outros países1,2, pouco tem sido pesquisado no Brasil sobre esse assunto de maneira sistemática e utilizando instrumentos que permitam comparação com outras nações. Menos ainda se sabe a respeito da mulher infratora, em sua adolescência.

Muitos estudos têm apontado que as garotas representam um segmento do sistema juvenil de justiça em rápida ascensão1,3,4. A literatura sobre o assunto ressalta que, embora as taxas de prisão de jovens do sexo masculino exceda as femininas em virtualmente todas as categorias de delitos, nos Estados Unidos da América as prisões femininas têm aumentado dramaticamente desde 1981, e o crescimento destas tem ultrapassado o crescimento masculino nos delitos violentos e não violentos. No Rio de Janeiro, segundo as estatísticas da Vara da Infância e Juventude da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, houve um crescimento de 200% nas taxas de delitos por adolescentes do sexo feminino entre 1996 e 2004. Durante o mesmo período, o aumento das taxas masculinas foi de 73%. Além disso, estudos têm demonstrado maior prevalência de transtornos psíquicos na população feminina de infratores adolescentes, comparando-se com a população masculina de infratores adolescentes1,5-7.

O aumento da parcela feminina na população de jovens em conflito com a lei, em particular nos delitos violentos, e a diferença do perfil psicopatológico entre gêneros, relatada em outros países, justificam a importância do presente trabalho que estuda a realidade brasileira. Assim, resumidamente, o objetivo deste estudo foi avaliar a prevalência de transtornos psiquiátricos em adolescentes infratores do Rio de Janeiro, procurando a possível relação entre a presença de transtornos e o tipo de delito e comparando os dados entre gêneros.

Tais dados contribuem para uma mudança na visão dos órgãos gestores, refletindo em políticas de saúde pública mais eficazes que busquem a detecção precoce de transtornos mentais em jovens, como forma de prevenção primária de delitos, mas também visem à maior assistência de saúde mental aos jovens em conflito com a lei, o que deverá contribuir substancialmente para o processo de recuperação e ressocialização desses jovens. Da mesma forma, a compreensão das particularidades da população feminina possibilita o desenvolvimento de estratégias diferenciadas que atendam apropriadamente esse segmento dos jovens cada vez mais marginalizado.

Métodos

A amostra foi obtida na única instituição governamental para detenção em regime fechado de jovens do sexo feminino de idades entre 12 e 21 anos do Rio de Janeiro. Todos os adolescentes foram entrevistados por uma só pesquisadora, médica especialista em psiquiatria infantil (RC Andrade.).

Para comparação entre gêneros, usamos os dados de estudo prévio realizado pela mesma autora, já publicado8, em população de jovens infratores de uma instituição para adolescentes em liberdade assistida. A coleta de dados em duas instituições foi necessária para a comparação entre gêneros por causa da dificuldade de acesso às jovens. Quando procuradas anteriormente na instituição responsável por regime semiaberto, as meninas eram muito raras. Algumas considerações importantes sobre a metodologia do prévio estudo, necessária para o entendimento da comparação entre gêneros, são feitas brevemente aqui.

Instituição para meninas em regime fechado

Foram avaliadas todas as meninas que preencheram critério de inclusão na única instituição governamental para detenção em regime fechado de jovens do sexo feminino de idades entre 12 e 21 anos do Rio de Janeiro. Essas meninas estavam já submetidas à sentença prisional ou esperando sentença, porém necessitando de detenção por uma das seguintes categorias: (1) a seriedade do crime cometido; (2) a incapacidade do tribunal de achar um guardião adequado; ou, finalmente, (3) a necessidade de proteção para outros. Os critérios para inclusão foram: meninas que foram condenadas ou temporariamente detidas (em uma das três situações descritas) com consentimento assinado da detenta e seu guardião para participação no estudo. Detentas foram excluídas do estudo quando elas e/ou seus guardiões recusaram participar ou quando elas não foram visitadas por um guardião. Quarenta e cinco meninas e seus respectivos guardiões foram convidados para participar do estudo: quatro recusaram; uma mãe disse à pesquisadora que ela não teria tempo para a entrevista, apesar de ter assinado o consentimento escrito (neste caso, nem a mãe nem a menina foram entrevistadas); três meninas deixaram a instituição antes que a pesquisadora pudesse completar ambas as entrevistas; três mães não recusaram participar do estudo, mas nunca estavam disponíveis para a entrevista; os guardiões de quatro meninas que foram entrevistadas visitaram a instituição muito raramente para serem também entrevistados. A amostra final foi constituída de trinta detentas entre 14 e 17 anos. A coleta de dados foi realizada entre julho de 2004 e janeiro de 2005.

A pesquisa foi planejada de acordo com a rotina da instituição, de modo a interferir nela o menos possível. A pesquisadora frequentou o Educandário Santos Dumont, na cidade do Rio de Janeiro, três vezes na semana durante horas de visita. Os guardiões e as meninas foram convidados ao mesmo tempo pela pesquisadora para participarem do estudo e foram informados que sua participação na pesquisa era voluntária e confidencial e que a qualquer tempo poderiam desistir sem serem penalizados. Ao concordarem em participar, eles assinaram um termo por escrito. A pesquisadora fez então um agendamento com o guardião (geralmente para o próximo dia de visita) para coletar os dados dele antes de entrevistar as adolescentes, segundo o horário da instituição permitia.

Instituição para adolescentes em liberdade assistida

Foi utilizada uma instituição judiciária juvenil para adolescentes que estão cumprindo sentença condicional no estado do Rio de Janeiro. A amostra colhida nesta instituição foi constituída de 116 jovens (99 meninos e 17 meninas) de idades entre 12 e 19 anos, que compareciam com seus guardiões às entrevistas obrigatórias e periódicas convocadas pelos profissionais da instituição. Ao comparecerem, eram convidados pela pesquisadora a responder à entrevista. Na época da coleta de dados, havia registro na instituição de 373 meninos e 58 meninas. Embora não tenham ocorrido recusas à entrevista, muitos descumpriam a obrigação legal de comparecer quando chamados ou não foram chamados nesse período.

Instrumento

Utilizou-se o Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School-Age Children – Present and Lifetime (K-SADS-PL)9, o qual consiste em uma entrevista semiestruturada subdividida em três partes principais. A primeira parte da entrevista consistiu em identificação, dados demográficos, história médica geral e cuidado médico atual, desenvolvimento, história passada de abuso, história psiquiátrica, histórico escolar e relações sociais. A segunda parte consistiu de uma triagem de 82 sintomas para detectar sintomas-chave para episódios passados e atuais em vinte áreas diagnósticas distintas. A terceira parte consistiu de cinco folhas de escala de diagnóstico complementar (i.e., outros transtornos afetivos, psicóticos, de ansiedade, comportamental e de abuso de substâncias) contendo proporções de sintomas diagnósticos confirmatórios em que a triagem foi positiva. Entrevista suplementar não foi requisitada se uma paciente foi triada positivamente para transtorno de estresse pós-traumático, fobia social, encoprese e enurese. Nesses casos, perguntas complementares foram inclusas no questionário de triagem. A entrevista de triagem também forneceu informação em iniciação em/e abuso de álcool e outras drogas.

A entrevista de triagem tem sido descrita como efetiva em fornecer análise diagnóstica da psicopatologia de toda vida e em diferenciar uma amostra psiquiátrica de indivíduos normais, e tem sido comparada favoravelmente a outros instrumentos9. Entretanto, todas as meninas foram entrevistadas usando-se a forma completa (três partes principais) do Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School-Age Children – Present and Lifetime (K-SADS-PL)10. Embora extensa, isso foi possível porque as meninas eram internas e a maioria dos guardiões visitou a instituição semanalmente.

Por sua vez, a amostra de jovens do estudo prévio, em liberdade assistida, preencheu todos os dados com exceção das cinco folhas complementares, por não terem tempo para essa avaliação mais longa. Para eles, então, temos completa a entrevista de triagem.

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa do Corpo Clínico do Hospital das Clínicas e pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Análise de dados

Testes paramétricos e não paramétricos foram usados quando necessário. Proporções foram comparadas usando-se o teste qui-quadrado. O nível de significância foi considerado em 0,05. Regressão logística foi utilizada no estudo das variáveis envolvidas na gravidade do delito.

Resultados

Características da amostra

A idade média da amostra foi de 15,8 anos (± 0,9). Não houve predominância de etnia. Apenas 16,7% das meninas estavam morando com ambos os pais na época em que foram presas, e seis meninas (20%) referiram abuso físico ou sexual. Todas as meninas frequentavam a escola dentro da instituição, e a maioria delas (26 meninas) ainda estavam no ensino fundamental. Dezesseis meninas (53%) abandonaram a escola em alguma época de suas vidas, e 17 (56%) disseram ter sido reprovadas na escola. Quinze (50%) haviam tido uma ficha de reclamações pela escola sobre elas.

Quanto à história gestacional e perinatal, 20% dos indivíduos referiram algum evento adverso perinatal, e 70% das adolescentes foram expostas na vida intrauterina ao tabaco, álcool ou drogas ilícitas: vinte meninas (67%) foram expostas ao tabaco, 17 meninas (57%) ao álcool e uma menina a drogas ilícitas.

Quanto à história psiquiátrica, três meninas (10%) receberam tratamento psiquiátrico antes de terem sido presas. Doze meninas (40%) estavam sob uso de medicação psiquiátrica prescrita pelo psiquiatra da instituição. A maioria das entrevistadas disse que a medicação que estava usando era para dormir, e apenas seis meninas sabiam o nome da medicação que estavam usando: cinco disseram ao entrevistador que estavam usando um antipsicótico de baixa potência e uma disse que estava em uso de um estabilizador do humor e um antidepressivo. A pesquisadora não teve acesso aos prontuários das pacientes, portanto toda informação médica foi fornecida pelas adolescentes e seus guardiões.

A prevalência do alcoolismo na família foi de 82%, e 50% das adolescentes referiram alcoolismo parental. A prevalência do uso de drogas ilícitas na família foi de 40%.

Quanto ao perfil dos delitos, os mais comuns cometidos pela amostra foram assalto armado em 13 casos (43,4%), homicídio em cinco casos (16,7%), tráfico de drogas em quatro casos (13,3%) e dois casos de possessão de armas e roubo (6,7%). Nove meninas (30%) eram reincidentes. As prevalências dos fatores socioambientais prévios à detenção estão explícitos no Gráfico 1.

Os adolescentes em regime semiaberto não diferiram significativamente em relação a esses dados.

Perfil psicopatológico

Os transtornos psiquiátricos presentes e em toda a vida mais prevalentes foram transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (33%), transtorno da conduta (77%), transtorno desafiador opositivo (50%), transtornos de ansiedade (70%), transtorno depressivo (50%), abuso de drogas ilícitas (70%) e abuso de álcool (52%) (Gráfico 2). Outros diagnósticos foram enurese (dez meninas), bulimia (uma menina) e transtornos de tiques (duas meninas).

Meninas triadas positivamente para transtorno da conduta também referiram significativamente mais abuso/dependência de álcool (p=0,004; teste qui-quadrado), assim como uso de drogas ilícitas (p=0,002; teste qui-quadrado), quando comparadas com aquelas que não sofriam desse transtorno.

As filhas de mães alcoólatras começaram o uso regular de álcool significativamente mais cedo quando comparadas com aquelas que não tinham uma mãe alcoólatra (p=0,006; teste t de Student). Meninas diagnosticadas para transtorno de conduta também referiram iniciação no uso de álcool significativamente mais cedo (p=0,05; teste t de Student). Não houve diferença entre estes dados e os obtidos na amostra de adolescentes em liberdade assistida.

Quanto aos transtornos psiquiátricos, também na amostra de adolescentes em liberdade assistida as mesmas patologias foram as mais prevalentes.

Comparação entre gêneros

A comparação entre gêneros foi feita com base na análise conjunta dos dados obtidos nas duas instituições (totalizando 99 adolescentes do sexo masculino e 47 adolescentes do sexo feminino). Os dados foram coletados em duas instituições diferentes, assim como em diferentes estágios do processo penal juvenil. Embora isso possa ser considerado uma limitação, vale lembrar que foi devido à dificuldade de acesso às jovens infratoras em liberdade assistida no estudo anterior. Porém, o mesmo instrumento foi aplicado, os mesmos procedimentos foram usados e a mesma pesquisadora coletou os dados em ambas as instituições.

A análise multivariada e a regressão logística foram conduzidas para determinar a associação entre delitos violentos, morbidade psiquiátrica e fatores de risco. As variáveis sociodemográficas foram gênero e idade. As características familiares usadas foram composição familiar, alcoolismo parental e abuso infantil. Os dados de desenvolvimento foram exposição intraútero ao álcool, drogas ilícitas e tabaco. O perfil psicopatológico levou em conta os transtornos mais prevalentes na amostra: transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, transtorno da conduta, transtorno desafiador opositivo, transtornos de ansiedade, transtorno depressivo, abuso/dependência de drogas ilícitas e abuso/dependência de álcool. A classificação dos delitos em duas categorias, “delitos violentos” e “delitos de propriedade”, foi feita de acordo com critérios adotados em diversos estudos, tais como os de Haapasalo e Hamalanen11. Estes autores propuseram uma distinção entre adolescentes que cometeram delitos violentos (assalto, assalto agravado, tentativa de homicídio, homicídio culposo) e aqueles adolescentes que cometeram delitos de propriedade (roubo, furto, posse de propriedade roubada, fraude, posse de armas, vandalismo e tráfico de drogas), com base na evidência de que há diferenças entre essas duas categorias de delitos, tais como fatores de risco, perfil psicopatológico e taxas de recidivas.

Esta análise indicou que a probabilidade de os adolescentes que foram triados para abuso/ dependência de álcool cometerem um delito violento foi 2,4 vezes maior do que aqueles sem abuso/dependência de álcool.

A subamostra de infratores violentos constituiu-se de 36 meninos e 26 meninas. O perfil psicopatológico de meninas e o de meninos inclusos na subamostra de infratores violentos foram comparados. Quando houve diferença entre gêneros, citamos a probabilidade estatística: 69% de meninas e 53% de meninos foram triados para transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, 92% das meninas e 78% dos meninos foram triados para transtorno da conduta, 62% das meninas e 33% dos meninos foram triados para transtorno desafiador opositivo (p=0,03; teste qui-quadrado); 81% de meninas e 44% dos meninos foram triados para transtornos de ansiedade (p=0,004; teste qui-quadrado), 77% das meninas e 61% dos meninos foram triados para Transtornos Depressivos; 69% das meninas e 39% dos meninos foram triados para abuso/dependência de drogas ilícitas (p=0,03, teste qui-quadrado); 50% das meninas e 28% dos meninos foram triados para abuso/dependência de álcool (Gráfico 3).

Discussão

Os resultados do presente estudo sugerem que a prevalência de transtornos psiquiátricos em adolescentes que estão sob custódia é maior que aquela esperada para a população geral da mesma idade, o que seria entre 15% e 20%12,13. A prevalência de transtornos psiquiátricos em qualquer momento da vida foi de 97%. Esses resultados mostrando uma alta prevalência de transtornos psiquiátricos na amostra de infratores juvenis está de acordo com outros estudos que observaram uma prevalência de 70%13-15.

Os transtornos psiquiátricos mais prevalentes neste estudo foram transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, transtorno da conduta, transtorno desafiador opositivo, transtornos de ansiedade, transtorno depressivo, abuso/ dependência de drogas ilícitas e abuso/dependência de álcool. O mesmo perfil psicopatológico tem sido observado em diversos estudos16-18.

A alta prevalência de alcoolismo parental (42%) na amostra é um fator de risco conhecido para comportamento antissocial e uso inapropriado de substâncias psicoativas17,19-23. A prevalência de alcoolismo em adultos brasileiros é de 10%24, ou em torno de um quarto daquela observada na amostra. Dentre o total de 146 adolescentes estudados, 57,5% referiram uso regular de álcool – maior que os 19,5% encontrados em um estudo de adolescentes no estado do Rio de Janeiro25. A probabilidade de aqueles adolescentes que foram triados para abuso/dependência de álcool cometerem um crime violento foi 2,4 vezes maior que aqueles que não abusavam/eram dependentes de álcool, quando as outras variáveis permaneceram constantes.

A droga ilícita mais prevalente foi cannabis (89%), seguida de cocaína (35%) e inalantes (21%). Para se ter uma ideia da magnitude dessas taxas, elas podem ser comparadas com um estudo norte-americano no qual o K-SADS foi aplicado em uma amostra de 1.710 adolescentes e a prevalência de abuso/dependência de álcool foi de 1% (0,9% no sexo feminino e 1,1% no sexo masculino), e a prevalência de abuso/dependência de drogas ilícitas foi de 1,8% (2,1% em meninos e 1,6% em meninas)26. Estudos anteriores têm reportado a alta prevalência de uso inapropriado de substância psicoativa em jovens infratoras14,15,17,27-29.

Na subamostra de infratores violentos, as meninas tendem a ter um perfil psicopatológico com maior prevalência de transtornos em relação aos meninos em todas as áreas diagnósticas investigadas. As meninas foram triadas significativamente mais para abuso/dependência de drogas ilícitas, transtornos de ansiedade e transtorno desafiador opositivo do que meninos. Estudos epidemiológicos de transtornos psiquiátricos na população geral de adolescentes têm encontrado um perfil diferente entre as taxas dos dois gêneros. Adolescentes do sexo feminino têm uma prevalência maior de transtornos internalizantes do que adolescentes do sexo masculino3032. A situação é inversa para transtornos externalizantes, os quais são mais prevalentes em meninos30,33. O perfil psicopatológico observado no presente trabalho, analisando-se adolescentes que cometeram delitos violentos, confirma outros estudos que têm encontrado prevalência de transtornos psiquiátricos maior em detentas adolescentes femininas.

A alta prevalência de transtornos psiquiátricos sugeridos pode ter sido influenciada por uma sobreposição entre diferentes transtornos com sintomas em comum. A literatura científica concorda que transtornos de humor e transtorno de déficit de atenção com hiperatividade podem exibir sintomas em comum com transtornos disruptivos32,33. A associação positiva entre transtornos de substâncias e transtornos externalizantes é bem conhecida e pode ser entendida como a seguir: comportamento antissocial como uma consequência de abuso/dependência de substâncias ou mais tarde como um dos sinais do início do quadro de comportamento antissocial17,28.

Apesar da alta prevalência de transtornos psiquiátricos sugerida, apenas 6% dos 146 adolescentes receberam atendimento em saúde mental. Esta estatística fornece alguma luz em relação à ineficiência dos serviços públicos de saúde mental para crianças e adolescentes no estado do Rio de Janeiro. Outros países também falham em um serviço público de saúde mental satisfatório para jovens, como pode ser visto em estudos norte-americanos34,35.

Como pôde ser visto a partir de um grande número de estudos, jovens no sistema penal estão em alto risco para problemas mentais, o que pode ter contribuído para o comportamento ilegal18 e que provavelmente interfere na reabilitação. Falha para diagnosticar transtornos pode impedir um programa de reabilitação de um jovem infrator e levar à recorrência do comportamento criminoso35. Foster et al.36 argumentam que manter adolescentes com problemas emocionais e comportamentais fora de detenção deveria ser a prioridade dos serviços públicos de saúde mental. Com o observado durante o período da pesquisa, a lacuna do serviço de saúde mental pode não só piorar os sintomas emocionais de crianças e adolescentes como também causar desintegração familiar ou dificuldades financeiras, uma vez que as despesas com transporte e medicação não são sempre custeados pelo serviço público de saúde.

O presente estudo procura contribuir para a compreensão dos detentos juvenis brasileiros do ponto de vista da saúde mental. Detecção precoce de comportamento criminoso é de incomensurável importância se quisermos melhorar nossas estratégias terapêuticas, e já está em tempo de tratar infração como uma prioridade de saúde pública. Assim, a articulação da saúde mental com áreas sociais, como o serviço social, é fundamental para impactar de forma positiva a vida desses jovens e a sociedade como um todo.

O estudo também aponta para a necessidade de proteger adolescentes da exposição precoce ao álcool, e sua vulnerabilidade é mais uma vez demonstrada neste estudo, que corrobora a literatura. Uma política mais séria, no sentido de não tratar o álcool como uma mercadoria qualquer, começa a surgir no Brasil em decorrência da pressão da sociedade em movimentos organizados.

Ao demonstrar que os jovens infratores apresentam grande prevalência de transtornos psiquiátricos, não pretendemos reduzir o problema do conflito com a lei à psiquiatria clínica. As crianças mais vulneráveis aos fatores ambientais adversos são justamente as que apresentam distúrbios psiquiátricos, que são, por sua vez, mais vulneráveis ao uso/abuso de substâncias, fator muito relacionado ao comportamento infrator.

O grande avanço representado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser concretizado também na oferta gratuita e ampla de atendimento em psiquiatria infantil, como medida não só humanística, mas também preventiva para a sociedade, de consequências maiores. Da mesma forma, é necessário que as medidas socioeducativas cumpram seu papel de ressocialização, o que, a nosso ver, passa necessariamente pelo tratamento em saúde e, dentro dela, especialmente a mental.

Colaboradores

RS Andrade trabalhou na concepção, na pesquisa, análise e interpretação dos dados e redação; FB Assumpção Junior, na concepção e no delineamento do estudo; IA Teixeira, na revisão crítica e na redação final; VAS Fonseca, na concepção, na análise e interpretação dos dados, revisão crítica e redação final.

Agradecimentos

Ao quadro efetivo das instituições analisadas por seu suporte amável à pesquisadora durante a coleta de dados, e aos adolescentes e suas mães que pacientemente concordaram em participar do estudo.

Referências

1. Abram KM, Teplin LA, McClelland GM, Dulcan MK. Comorbid psychiatric disorders in youth in juvenile detention. Arch Gen Psychiatry 2003; 60(11):1097-1098.         [ Links ]

2. Cauffman E. A statewide screening of mental health symptoms among juvenile offenders in detention. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2004; 43(4):430-439.         [ Links ]

3. Assis SG, Constantino P. Filhas do mundo: infração juvenil feminina no Rio de Janeiro: executive summary./Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001.         [ Links ]

4. Guthrie BJ, Hoey EMS, Ravoira L, Kintner E. Girls in the juvenile justice system: leave no girl’s health un-addressed. J Pediatr Nurs 2002; 17(6):414-423.         [ Links ]

5. Espelage D, Cauffman E, Broidy L, Piquero A, Mazerolle P, Steiner H. A cluster-analytic investigation of MMPI profiles of serious male and female juvenile offenders. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2003; 42(7):770-777.         [ Links ]

6. McCabe KM, Lansing AE, Garland A, Hough R. Gender differences in psychopathology, functional impairment, and familial risk factors among adjudicated delinquents. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2002; 41(7):860-867.         [ Links ]

7. Kim JYS, Fendrich M. Gender differences in juvenile arrestees: drug use, self-reported dependence, and perceived need for treatment. Psychiatr Serv 2002; 53(1):70-75.         [ Links ]

8. Andrade RC, Silva VA, Assumpção Jr FB. Prevalence of psychiatric disorders in Brazilian juvenile delinquents. Braz J Med Biol Res 2004; 37(8):11551160.         [ Links ]

9. Ambrosini PJ. Historical development and present status of the Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School-Age Children (K-SADS). J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2000; 39(1):49-58.         [ Links ]

10. Kaufman J, Birmaher B, Brent D, Rao U, Flynn C, Moreci P, Williamson D, Ryan N. Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School-Age Children – Present and Lifetime version (K-SADS-PL): initial reliability and validity data. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1997; 36(7):980-988.         [ Links ]

11. Haapasalo J, Hamalanen T. Childhood family problems and current psychiatric problems among young violent and property offenders. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry1996; 35(10):1394-1401.         [ Links ]

12. Roberts RE, Atkisson CC, Rosenblatt A. Prevalence of psychopathology among children and adolescents. Am J Psychiatry 1998; 155(6):715-725.         [ Links ]

13. Cauffman E, Feldman SS, Waterman J, Steiner H. Posttraumatic stress disorder among female juvenile offenders. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1998; 37(11):1209-1216.         [ Links ]

14. Randall J, Henggeler SW, Pickrel SG, Brondido M. Psychiatric comorbidity and the 16-month trajectory of substance-abusing and substance-dependent juvenile offenders. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1999; 38(9):1118-1124.         [ Links ]

15. Teplin LA, Abram KM, McClelland GM, Dulcan MK, Mericle AA. Psychiatric disorders in youth in juvenile detention. Arch Gen Psychiatry 2002; 59(12):1133-1143.         [ Links ]

16. Steiner H, Garcia IG, Matthews Z. Posttraumatic stress disorder in incarcerated juvenile delinquents. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1997; 36(3):3577-365.         [ Links ]

17. Taylor J, Malone S, Iacono WG, McGue M. Development of substance dependence in two delinquency subgroups and nondelinquents from a male twin sample. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2002; 41(4):386-393.         [ Links ]

18. Loeber R, Burke JD, Lahey BB, Winters A, Zera M. Oppositional defiant and conduct disorder: a review of the past 10 years, part I. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2000; 39(12):1468-1484.         [ Links ]

19. Malone SM, Iacono WG, McGue M. Drinks of the father: father’s maximum number of drinks consumed predicts externalizing disorders, substance use, and substance use disorders in preadolescent and adolescent offspring. Alcohol Clin Exp Res 2002; 26(12):1823-1832.         [ Links ]

20. Sher KJ, Walitzer KS, Wood PK, Brent EE. Characteristics of children of alcoholics: putative risk factors, substance use and abuse, and psychopathology. J Abnorm Psychol 1991; 100(4):427-448.         [ Links ]

21. Lynskey MT, Fergusson DM, Horwood LJ. The effect of parental alcohol problems on rates of adolescent psychiatric disorders. Addiction 1994; 89(10):1277-1286.         [ Links ]

22. Carbonneau R, Tremblay RE, Vitaro F, Dobkin PL, Saucier JF, Pihl RO. Paternal alcoholism, paternal absence and the development of problem behaviors in boys from age six to twelve years. J Stud Alcohol 1998; 59(4):387-398.         [ Links ]

23. Blackson TC, Butler T, Belsky J, Ammerman RT, Shaw DS, Tarter RE. Individual traits and family contexts predict sons’ externalizing behavior and preliminary relative risk ratios for conduct disorder and substance use disorder outcomes. Drug Alcohol Depend 1999; 56(2):115-131.         [ Links ]

24. Laranjeiras RC, Pinsky I. O alcoolismo (alcoholism). São Paulo: Contexto; 1997.         [ Links ]

25. Marques ACPR, Cruz MS. O adolescente e o uso de drogas. Rev Bras Psiquiatr 2000; 22(2):32-36.         [ Links ]

26. Weinberg NZ, Rahdert E, Colliver JD, Glantz MD. Adolescent substance Abuse: a review of the past 10 years. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1998; 37(3):252-261.         [ Links ]

27. Steiner H. Practice parameters for the assessment and treatment of children and adolescents with conduct disorder. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1997; 36(Suppl.10):122S-139S.         [ Links ]

28. Kuperman S, Schlosser SS, Kramer JR, Bucholz K, Hesselbrock V, Reich T, Reich W. Developmental sequence from disruptive behavior diagnosis to adolescent alcohol dependence. Am J Psychiatry 2001; 158(12):2022-2026.         [ Links ]

29. Chassin L, Rogosch F, Barrera M. Substance use and symptomatology among adolescent children of alcoholics. J Abnorm Psychol 1991; 100(4):449-463.         [ Links ]

30. Boyle MH, Offord DR, Racine Y, Szatmari P, Fleming JE, Sanford M. Identifying thresholds for classifying childhood psychiatric disorder: issues and prospects. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1996; 35(11):1440-1448.         [ Links ]

31. Bernstein GA, Shaw K. Practice parameters for the assessment and treatment of children and adolescents with anxiety disorders. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1997; 36(Suppl.10):69S-84S.         [ Links ]

32. Birmaher B, Brent DA, Benson RS. Practice parameters for the assessment and treatment of children and adolescents with depressive disorders. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1998; 37(11):1234-1238.         [ Links ]

33. Dulcan M. Practice parameters for the assessment and treatment of children, adolescents, and adults with attention-deficit/hyperactivity disorder. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1997; 36(Suppl.10):85S121S.         [ Links ]

34. Novins DK, Duclos CW, Martin C, Jewett CS, Manson SM. Utilization of alcohol, drug, and mental health treatment services among American Indian adolescent detainees. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1999; 38(9):1102-1108.         [ Links ]

35. Wasserman GA, McReynolds LS, Lucas CP, Fisher P, Santos L. The voice DISC-IV with incarcerated male youths: prevalence of disorder. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2002; 41(3):314-321.         [ Links ]

36. Foster EM, Qaseem A, Connor T. Can better mental health services reduce the risk of juvenile justice system involvement? Am J Public Health 2004; 94(5):859-865.         [ Links ]

Artigo apresentado em 03/07/2008
Aprovado em 28/11/2008
Versão final apresentada em 10/01/2009


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



Newsletter


    Skip to content