Maconha: a diferença entre o remédio e o veneno
Ronaldo Laranjeira*
Você consumiria um produto com mais de 500 substâncias, muitas delas nocivas, para usufruir dos benefícios à saúde proporcionados por uma ou duas presentes em sua composição? Provavelmente não, afinal, faz sentido tratar um problema de saúde e ganhar tantos outros?
Mas, e se fosse possível extrair essas substâncias e sintetizá-las para fins medicinais? Você teria dúvidas? De novo, provavelmente não, afinal, esse consumo, de uma hora para outra, se tornou mais seguro.
Usei este exemplo para ilustrar, usando apenas a lógica, a questão de drogas como a maconha. Sempre afirmo que existe uma enorme diferença entre o ato de fumar a droga e o uso terapêutico de uma substância presente em sua composição. Realmente, a Cannabis sativa, planta que dá origem à maconha, possui mais de 500 elementos. Dentre eles podemos destacar dois – o canabidiol (CBD) e tetra-hidrocanabinol, o conhecido THC.
CBD e THC
Como inclusive já apontei aqui na coluna, várias pesquisas demonstraram os efeitos nocivos provocados ao nosso corpo pelo THC, uma substância que, apesar de ter aspectos terapêuticos em pacientes com glaucoma, no tratamento de espasticidade e náuseas ocasionadas por quimioterapia, é viciante, afeta os sistemas nervoso central e vascular e chega a dobrar o risco de desenvolvimento de doenças psíquicas, como esquizofrenia e até psicose.
Do outro lado, na mesma planta está presente uma substância que combate os efeitos do THC, o CBD. Ele atua justamente na diminuição de efeitos psicóticos, de ansiedade, entre outros, provocados pelo THC. Tanto que os medicamentos aprovados até o momento para comercialização do THC, como para tratamento de esclerose múltipla, também têm em sua composição o CBD.
Diversas pesquisas realizadas a partir dos anos 1970 conseguiram demonstrar os efeitos positivos do CBD, inclusive como anticonvulsivo, e, no Brasil (um país com pesquisadores pioneiros na área, como Elisaldo Carlini, Antonio Waldo Zuardi e José Alexandre de Souza Crippa), os estudos continuam a ser realizados, na tentativa de provar sua eficácia no tratamento de doenças como esquizofrenia, epilepsia, Parkinson, Alzheimer e até autismo. Dados obtidos até então indicam que a substância não tem efeito alucinógeno nem provoca dependência, ao contrário do tetra-hidrocanabinol.
Inclusive, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já incluiu, em 2016, derivados de CBD na lista de substâncias psicotrópicas vendidas no Brasil, em medicamentos de tarja preta, com a necessidade de receitas específicas. A Anvisa autoriza também, mediante certas condições, a importação de CBD para casos de epilepsia refratária que apresentem resistência a medicamentos convencionais.
A maconha possui sim elementos com efeito medicinal. Porém, fumar a droga, pura e simplesmente, provoca mais um efeito alucinógeno e prejudicial do que terapêutico.
Pense no caso de medicamentos para a pressão ou para tratamento doenças cardíacas, elaborados a partir de substâncias provenientes de venenos de cobra (sim, eles existem). O veneno é receitado? Lógico que não, apenas um remédio criado a partir de substâncias presentes nele. E anestésicos que têm elementos extraídos do ópio? Se seguirmos o raciocínio dos que defendem a legalização da maconha para uso medicinal, teríamos então que legalizar também esta droga para consumo. Não faz sentido. Nenhum outro produto é usado in natura – existe uma ordem que precisa ser respeitada, para a segurança da população. O produto tem que ser sintetizado, passar por testes, enfim, até ser aprovado como um medicamento seguro.
Nesse contexto, é muito importante analisar também questões financeiras, de mercado, que influenciam decisões políticas. O CBD é um composto não patenteável, assim, o interesse de grandes empresas em realizar pesquisas que demonstrem seus efeitos é menor do que em outras situações, já que, após ser aprovado para produção e comercialização, não será possível ter sua patente exclusiva. Resumindo – será um produto com grande concorrência no mercado. Inclusive, por isso a maioria das pesquisas na área hoje é realizada em centros acadêmicos.
O exemplo americano – Porém, grandes investidores (com base no que acontece nos Estados Unidos principalmente) veem a simples legalização da maconha como uma rápida e incrível oportunidade de lucro, bilionário por sinal. Por quê? O mercado americano nos fornece essa explicação, vendendo desde a droga para fumo até doces de maconha, que possuem grande apelo, inclusive para crianças.
Não à toa, ocorreu um forte investimento em lobby em estados e no congresso americano, visando a legalização da droga para comercialização, se aproveitando até de uma visão ingênua de parte da opinião pública, que ainda acredita na história de que o famoso “baseado” é leve, não faz mal. Tanto que o uso da “maconha medicinal” em diversos locais nos Estados Unidos não foi aprovado por médicos e sim por meio de plebiscito.
O que colaborou para a criação dessa imagem, e poucos sabem, é o fato de a concentração de THC na maconha ter sido de 0,5%, em média na década de 1960, por exemplo. Com o tempo e modificação da droga, esses níveis foram subindo, podendo chegar a até 30% hoje. Na prática, estamos falando de outra droga, modificada, muito mais potente e perigosa, presente até em produtos comestíveis. Tendo em vista os altos riscos sociais e de saúde pública que a medida apresenta, os Estados Unidos se mostram não como um exemplo a ser seguido, e sim evitado.
Com todo esse contexto em mente, pense bem nessa questão. O que é melhor para a saúde da população: a simples liberação do consumo de uma droga, que provoca dependência e diversos outros males, ou a pesquisa e extração de substâncias com poder terapêutico, para serem disponibilizadas como medicamentos? A medicina nos mostra que resposta é mais simples do que parece.
* É professor titular de psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM).